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Entrevista com a chef Bel Coelho: “comemos biomas”, a relação entre alimentação e conservação

"Meu sonho mesmo é que a gente tenha floresta em pé com produção de alimento mais sustentável" conta Bel Coelho em entrevista à SOS Mata Atlântica

18 de abril de 2022

Por Monica C. Ribeiro 

 

Quando criou o restaurante Clandestino, que funcionou na cidade de São Paulo de 2014 a 2020 (as atividades foram encerradas por causa da pandemia da covid-19), a chef Bel Coelho trouxe muita inovação aos menus, promovendo a valorização de ingredientes e frutas nativos dos biomas brasileiros, além de saberes e culturas que orbitam o entorno de tudo isso.

A agricultura familiar, as cadeias produtivas mais sustentáveis e menos agressivas ao meio ambiente estão sempre no horizonte da chef, e foram herdadas pelo atual restaurante que ela gerencia, o Cuia Café, aberto em 2020 aos pés do edifício Copan, no centro de São Paulo. No novo espaço, ela continua a apresentar pratos que refletem a pesquisa de ingredientes e técnicas brasileiras.

Bel diz ter começado a se interessar ainda mais por alimentos e produtos nativos do Brasil quando, em 2013, viajou por todo o país para gravar o programa Receita de Viagem, exibido pelo Discovery Channel.

Natural de São Paulo, a chef cresceu em contato com a natureza e diz se sentir melhor quando tem o verde à sua volta: “Tem gente que é menos ligado, mas para mim é muito forte isso. Acho que tem muito a ver com a espiritualidade, se sentir conectado a essa egrégora de seres vivos, do planeta, de se bastar mais. As cidades geram muita ansiedade.”

Nesta entrevista concedida à Fundação SOS Mata Atlântica, Bel Coelho fala de sua relação com a natureza, com a biodiversidade e com os alimentos nativos, sobre a importância de apoiar cadeias sustentáveis da agricultura familiar, e também de seu ativismo em prol dessas causas.

 

Menu Biomas, da chef Bel Coelho (Foto: Sérgio Coimbra)

 

– No restaurante Clandestino, você trouxe um conceito de que ‘comemos biomas’. Em geral, as pessoas não fazem essa conexão entre o que se come e a biodiversidade. Como surgiu essa relação na sua criação gastronômica?

Ah, foi a partir das minhas pesquisas sobre ingredientes nativos. Sempre me interessei por ingredientes brasileiros, endêmicos, e depois, mais especificamente, pelos ingredientes nativos de cada bioma. E percebi que a divisão geográfica do Brasil – norte, sul, centro oeste, enfim – não fazia muito sentido do ponto de vista ambiental e até gastronômico. Então comecei a estudar e entender de onde vinha cada ingrediente nativo e me coloquei esse desafio de fazer um menu inteiro inspirado nos biomas brasileiros, com pelo menos dois ingredientes nativos de cada um. Parece uma coisa simples, mas não é. Não comemos muita coisa das nossas florestas. A gente consome muito pouco as frutas nativas da Mata Atlântica, por exemplo, e elas são muito nutritivas. Eu fiquei impressionada em como não valorizamos esses tesouros, que são os produtos e os saberes que existem junto a eles. Com a extinção ambiental, vem também a extinção cultural. Passa a não ser interessante produzir aquela fruta, e as receitas e os saberes relacionados a ela também vão desaparecendo. A minha ideia com o menu Biomas era justamente entender, criar repertório com esses produtos e também descobrir e resgatar alimentos.

 

– Como descobrir esses sabores e ingredientes nativos mexeu com você profissionalmente? Essa exploração, tanto no contato com a biodiversidade como também com o contato com os saberes tradicionais das comunidades?

É muito inspirador conhecer povos que ainda usam esses produtos, ou que produzem esses ingredientes. Eu aprendo muito. Aprendo a usar e também me inspiro a criar novas receitas, trazer outras técnicas e aplicá-las com esses ingredientes. Essa pesquisa toda veio em função das minhas viagens pelo Brasil inteiro para gravar o programa Receita de Viagem para o Discovery Channel. Comecei a conhecer agricultores que produziam com floresta em pé, em agrofloresta, produtores de Baru no Cerrado, e logo percebi como tudo isso é rico, com tantos produtos que a gente não vê na cidade. Foi um caminho sem volta. Depois que eu voltei dessas viagens, continuei buscando produtos. E também comecei a receber muita coisa do Brasil inteiro. Sempre que posso procuro visitar e entender como essas cadeias produtivas ainda sobrevivem, o que precisam para sobreviver, enfim, essa é um pouco a ideia. Meu sonho mesmo é que a gente tenha floresta em pé com produção de alimento mais sustentável.

 

– Nesse processo de exploração, algum alimento, ingrediente ou sabor te marcou mais?

Eu ando muito apaixonada pela Castanha de Sapucaia. Gosto muito do Bacuri na Amazônia. Mas adoro todas as frutas da Mata Atlântica. O Buriti, que é mais do Cerrado. A gente tem tantas riquezas e possibilidades que é difícil escolher. Adoro butiá. Eu realmente opto pela diversidade nesse caso, não consigo escolher um só.

 

Menu Biomas, da chef Bel Coelho (Foto: Sérgio Coimbra)

 

– Qual a importância da agricultura familiar nesse processo de valorização da biodiversidade e de uma produção mais sustentável?

É uma agricultura fundamental para conseguirmos transitar para uma produção mais limpa. Apesar de termos muitos latifúndios, muitas fazendas grandes produzindo, a agricultura familiar ainda prevalece, abastece boa parte da mesa dos brasileiros e precisa ser mais incentivada. É mais fácil transformar pequenas propriedades em algo mais sustentável, e que também resolva o problema de abastecimento de alimentos, do que transformar grandes latifúndios. Não que não seja possível, porque também é. Dá para ser orgânico, desmatar menos, ou não desmatar, que seria o melhor. Mas acho que a agricultura familiar, por ser em menor escala, nos dá mais possibilidade de ter uma equação produtiva o suficiente para garantir a subsistência das famílias e fornecer em pequena escala, sem agredir o meio ambiente. É uma peça chave, fundamental.

 

– Está fazendo pesquisa de algum alimento específico atualmente?

A gente provavelmente deve reabrir o Clandestino, e vamos criar um novo menu dos biomas. Quero usar mais Buriti, Babaçu, mais PANCs (Plantas Alimentícias não Convencionais). Não tenho um alimento específico em pesquisa nesse momento, mas eu gosto muito de Ora-pro-nóbis e Taioba, que têm uma propriedade nutricional muito alta, proteína alta, e a gente usa tão pouco. Tenho estudado e usado muito as PANCs.

 

– No Clandestino, os menus oferecidos refletiam muito a cultura e a biodiversidade –  Biomas, Orixás, Frutas, enfim. Uma explosão de possibilidades de provar e entender um pouco a cultura e os sabores do Brasil. Como é possível traduzir tudo isso nos pratos? O que é que te inspira?

Receitas tradicionais podem me inspirar. Os saberes de produtores que estão com a mão na terra são muito inspiradores. Conversar com essas pessoas, ir até elas. Tem muito chef de cozinha que diz que não tem tempo de visitar, mas é muito inspirador fazer essas viagens, conhecer uma fruta no pé, entender o que tem em volta, que animal come aquela fruta, enfim, todo o ecossistema. E também a cultura alimentar me interessa muito. No caso do menu Orixás, estudar comida de santo, de terreiro, e o que cada orixá come foi muito inspirador para criar os pratos. O que se come em cada bioma, em cada ecossistema, também é uma coisa que me inspira. Acho que é infinita essa inspiração, por isso eu nunca paro de visitar os produtores. Isso é combustível para o meu trabalho.

 

Menu Biomas, da chef Bel Coelho (Foto: Sérgio Coimbra)

 

– Como esse universo tão rico de acúmulo se reflete no Cuia, por exemplo?

Não é da mesma forma e nem com o mesmo foco como no Clandestino, mas usamos muito produtos de pequenos produtores, de cadeias produtivas normalmente mais frágeis. E essa escolha vem muito de toda essa pesquisa. Temos sempre um suco de fruta nativa. Eu uso castanhas brasileiras, enfim. A ideia continua sendo valorizar a biodiversidade e essas cadeias produtivas.

 

– Como é a sua relação com a natureza?

Desde pequena eu tenho contato com a natureza. Tínhamos um sítio no interior de São Paulo, casa na praia, e me lembro de sentir a diferença, a calma que era me conectar e estar com a natureza, seja em volta de bichos, seja em horta ou pomar. Tenho muitas boas lembranças desse contato na infância, e ainda mais na adolescência. Durante muito tempo quis morar em outra cidade que tivesse mais natureza, como o Rio. Mas isso mudou um pouco porque, apesar da cidade ter ainda muita natureza, é uma cidade muito tensa. Tenho vontade de ter um sítio, de ter até um Clandestino fora de São Paulo. Eu fico melhor onde tem verde em volta, acho que todo mundo. Tem gente que é menos ligado, mas para mim é muito forte isso. De se sentir contido. Acho que tem muito a ver com a espiritualidade, se sentir conectado mesmo nessa egrégora de seres vivos, do planeta, de se bastar mais. As cidades geram muita ansiedade.

 

– E seus filhos, têm esse mesmo apetite, essa mesma relação com natureza, com o experimentar?

Eles são bem privilegiados, porque frequentam um sítio na Serra da Mantiqueira, em São Bento de Sapucaí. E também uma casa na praia, dos avós paternos. Eles gostam muito desse contato com a natureza. Gostam muito de provar as coisas, as frutas, de conhecer, entender. E de cozinhar também.

 

– Qual pode ser o papel da comida para termos um mundo mais justo e biodiverso? Como o nosso ato cotidiano de comer tem poder de ser revolucionário?

Acho que primeiro é um canal interessante para trazer consciência do impacto de cada um. Cada um tem um impacto político, ambiental e social no planeta. Comprar um produto industrializado para comer ou comprar comida de verdade, orgânica ou não, enfim, tudo isso tem um impacto. O ato de se alimentar, cozinhar ou até sair para comer, e tentar ir atrás de todos os rastros e pegadas do alimento até ele chegar no prato, ou até depois disso, o lixo que ele gera, isso tudo é uma ferramenta muito poderosa de consciência. E eu uso isso a favor desse ativismo justamente porque quero que a gente tenha uma produção de alimentos mais sustentável.

Entender quais são os entraves, os desafios dos produtores, tentar trabalhar a favor, é muito importante. Às vezes eu ouço – ‘ah, vai cozinhar, você não devia falar de política, só de comida’ etc. Só que é uma burrice muito grande achar que cozinhar e servir comida não são um ato político. Mesmo se você não levanta bandeiras, ao fazer escolhas conscientes já está tomando atitudes políticas e sociais. Mesmo que não se manifeste explicitamente sobre isso.

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