Artigo por Mario Mantovani[1] e Fabio Feldmann[2]:
A Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) foi aprovada depois de mais de catorze anos de tramitação com intensos conflitos, nos quais se colocavam, de um lado, parlamentares e organizações não-governamentais ambientalistas e, de outro, parlamentares e entidades representativas do setor produtivo especialmente dos estados da região sul do país. As maiores divergências nesse processo legislativo foram relativas à abrangência territorial do bioma Mata Atlântica.O empenho da sociedade civil em prol dessa lei foi tão forte, que viabilizou a própria consolidação da Rede de ONGs da Mata Atlântica, hoje com mais de trezentas entidades filiadas em dezessete estados brasileiros.
No final do referido processo legislativo, gerou-se um texto legal que pode ser lido como reflexo de um aprendizado político relevante. Os conflitos existentes foram solucionados com a adoção de um texto inovador, que incorpora a preocupação com os instrumentos econômicos de política ambiental e, cabe ressaltar, trabalha a proteção das florestas e outras formas de vegetação segundo critério diferenciado, conforme se trate de vegetação nativa primária ou secundária. O critério de regular a proteção segundo a caracterização como vegetação primária ou secundária em diferentes estágios de regeneraçãoé adotado apenas pela Lei da Mata Atlântica, fundamentando-se na situação particular de grande degradação do bioma.
A Lei 11.428/2006 tem base no próprio texto da Constituição federal, que em seu art. 225, § 4º, define esse bioma e outros como patrimônio nacional e prevê que sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
Cabe analisar, então, a força normativa da Lei da Mata Atlântica, em face de duas inovações importantes no nosso conjunto de leis ambientais de aplicação nacional: a Lei Complementar 140/2011 e a nova lei florestal (Lei 12.651/2012, alterada pela Lei 12.727/2012), que revogou a Lei 4.771/1965.
A Lei Complementar 140/2011, que dispõe sobre a atuação coordenada em política ambiental de União, Estados, Distrito Federal e Municípios, inclui dispositivo que assegura a plena aplicação da Lei da Mata Atlântica. Fica estabelecido expressamente no art. 11 da referida lei complementar que “a lei poderá estabelecer regras próprias para atribuições relativas à autorização de manejo e supressão de vegetação, considerada a sua caracterização como vegetação primária ou secundária em diferentes estágios de regeneração, assim como a existência de espécies da flora ou da fauna ameaçadas de extinção”. Assim, as atribuições dos entes federados para a emissão de licenças e autorizações ambientais, nas áreas abrangidas pelo bioma Mata Atlântica, deverão observar também as disposições nesse sentido constantes na Lei 11.428/2006.
A análise nessa linha assume maior potencial de polêmica quando se colocam em pauta os efeitos da nova lei florestal na aplicação da Lei da Mata Atlântica. Entende-se que ela é uma lei especial não apenas porque se direciona a um bioma específico, mas também em razão de suas regras assumirem a vegetação nativa primária ou secundária em diferentes estágios de regeneração como parâmetro, diferentemente da nova lei florestal e, também, do que fazia a Lei 4.771/1965 revogada.
A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare,quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente amatéria de que tratava a lei anterior, consoante disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4657/1942). Ocorre que a mesma lei expressa, no § 2º do seu art. 2º, que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a pardas já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. Este é exatamente o caso das regras voltadas à proteção da vegetação no bioma Mata Atlântica, quando analisadas em face da recente lei florestal. Elas permanecem, assim, em vigor.
As regras presentes na Lei 11.428/2006 coexistiam com as da Lei 4.771/1965. Assim, se estava prevista, por exemplo, reserva legal de 20% da área do imóvel rural nas regiões abrangidas pelo bioma Mata Atlântica, isso não significava que o proprietário ou possuidor poderia desflorestar 80%. Impunha-se a análise da vegetação nativa existente no imóvel, se primária ou secundária em diferentes estágios de regeneração.
Essa leitura fica mantida com a entrada em vigor da Lei 12.651/2012, alterada pela Lei 12.727/2012. As disposições da nova lei florestal serão aplicadas lado a lado com a disciplina jurídica da vegetação nativa do bioma Mata Atlântica, consolidada na Lei 11.428/2006. Essa interpretação aplica-se inclusive às ocupações consolidadas objeto dos programas de regularização ambiental. O conteúdo desses programas e a sua implantação nos imóveis rurais não poderão conflitar com as regras específicas trazidas pela Lei da Mata Atlântica.
Dessa forma, fica claro que, respeitando-se as bases do sistema jurídico brasileiro, o pouco que ainda resta de Mata Atlântica permanece protegido pelos instrumentos da Lei da Mata Atlântica, a despeito das permissividades predatórias vigentes na nova lei florestal.