Relatório recente da Lancet aponta para a reversão dos avanços no desenvolvimento sustentável, no enfrentamento da insegurança alimentar e na saúde pública
8 de novembro de 2021* Luis Fernando Guedes Pinto e Ana Paula Bortoletto
Artigo publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas
A conceituada editora científica Lancet publicou o relatório The Lancet Countdown de 2021 (contagem regressiva, em inglês) dias antes da 26ª Conferência do Clima, a COP26, que ocorre no Reino Unido e que tem a responsabilidade de encerrar as negociações para a implementação do Acordo de Paris. A publicação é uma colaboração internacional que monitora as consequências das mudanças do clima para a saúde e representa o consenso de pesquisadores líderes de 43 instituições de pesquisa e agências das Nações Unidas.
O documento aponta que as mudanças climáticas já estão causando sérias consequências para a saúde humana. A onda de temperaturas acima de 40°C na América do Norte neste ano afetou a saúde e resultou em mortes precoces de pessoas acima de 65 anos ou crianças menores de 1 ano, além de grupos sociais mais marginalizados daquela região. Trabalhadores rurais expostos ao sol e ao calor ficaram entre os mais afetados nos países de baixo e médio desenvolvimento. O Brasil e a Índia aparecem entre os países com o maior aumento absoluto de mortalidade devido ao calor entre 2018 e 2019.
Além disso, o aumento da temperatura e as secas cada vez mais intensas e frequentes, começaram a reverter anos de progresso no enfrentamento da insegurança alimentar e hídrica que ainda afetam as populações vulneráveis do planeta. Os principais cereais que alimentam a população mundial tiveram diminuição de produção em 2020 em relação ao período 1981-2010 em função das mudanças climáticas, sendo um sinal concreto sobre o efeito do clima para a oferta de alimentos no futuro. Estimativas da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) de 2019 apontaram que o acréscimo de 1ºC na temperatura global aumentaria em 1,64% a probabilidade de insegurança alimentar grave. Vale lembrar que a insegurança alimentar, que já afetava 2 bilhões de pessoas em 2019, está em ascensão e deve ser agravada pelo aprofundamento das desigualdades e irá atingir mais gravemente mulheres das áreas rurais.
O relatório do The Lancet ainda aponta que mudanças ambientais também estão aumentando o risco de contágio de doenças transmitidas por insetos, comprometendo avanços históricos para a erradicação de epidemias de doenças como a malária, a dengue e a chikungunya. Estas continuam afetando as populações mais vulneráveis do Sul global, mas agora também atingem países ricos e desenvolvidos. A pandemia da covid-19, o ebola e outras doenças infecciosas são resultado do desequilíbrio dos ecossistemas naturais e da falta de hábitat para a vida silvestre. Para se ter uma ideia, estima-se que mais de 60% das doenças infecciosas humanas são causadas por patógenos compartilhados com animais selvagens ou domésticos.
As maiores preocupações destacadas em The Lancet Countdown são a reversão de anos de progresso na saúde pública e no desenvolvimento sustentável e a inércia política dos governos nacionais, que não estão tomando medidas para enfrentar este dramático problema climático e de saúde, que pode levar a milhões de mortes anualmente e comprometer a saúde das gerações presentes e futuras.
O risco de novas pandemias e ameaças à saúde de um planeta mais quente pode ser diminuído por meio de investimentos para a mitigação e a adaptação para o clima. O dramático contexto da covid-19 mostrou que é possível construir o prometido fundo climático de US$ 100 bilhões por ano para que os países de baixa e média renda possam adotar ações contra as mudanças climáticas e a lidar com seus efeitos. Governos do mundo todo alocaram trilhões de dólares para enfrentar a pandemia, poderiam também investir no enfrentamento das mudanças climáticas. Temos uma oportunidade única à nossa frente para conservar a natureza, proteger a saúde e combater a desigualdade de uma só vez.
Considerando o papel dos sistemas alimentares nas emissões de gases de efeito estufa e a crescente contribuição da pecuária, responsável por 52% das emissões provindas da agricultura, a necessidade de mudança nos padrões alimentares coloca-se como uma urgência, principalmente nos países desenvolvidos. Ademais, as mortes atribuíveis ao consumo elevado de carne vermelha, característica de países com renda mais elevada ou com uma economia em transição como China ou Brasil, são destacadas no relatório, confirmando que os esforços realizados para mudar esse perfil foram insuficientes até o momento. Já as mortes atribuíveis a fatores de risco relacionados à alimentação não saudável, como obesidade e excesso de peso, merecem maior destaque nas formulações de soluções apontadas pelo relatório e estão relacionadas ao elevado consumo de produtos ultraprocessados, que nem foram mencionados.
Se a oportunidade de virar o jogo é única e necessária para o mundo, é ainda mais especial para o Brasil. O país sabe como reduzir o desmatamento já que diminuímos drasticamente a destruição da Amazônia e da Mata Atlântica entre 2004 e 2013. A conservação e a restauração dos ecossistemas estão entre as soluções que podem colaborar para um ganha-ganha coletivo. Enquanto o fim do desmatamento reduz drasticamente a emissão de gases de efeito estufa, a restauração das florestas e demais ecossistemas podem sequestrar enormes quantidades desses gases. Além disso, os ecossistemas nos oferecem serviços para garantir água em quantidade e com qualidade, manter e até aumentar a produção de alimentos. Por fim, a biodiversidade protegida e em equilíbrio diminui o risco das epidemias e pandemias transmitidas pela vida silvestre.
No mesmo período entre 2004 e 2013, a produção de alimentos aumentou, a agricultura familiar foi fortalecida e a fome e a insegurança alimentar e nutricional diminuíram fortemente. Porém, o atual padrão alimentar com aumento do consumo de produtos ultraprocessados e as elevadas taxas de obesidade e excesso de peso indicam a necessidade de soluções efetivas que considerem a má nutrição em todas as suas formas. A priorização de ambientes alimentares saudáveis, que desestimulem o consumo de ultraprocessados, com medidas regulatórias é fundamental para o favorecimento dos alimentos saudáveis e que fazem parte da nossa cultura alimentar.
Se no plano internacional vivemos a Década da Restauração de Ecossistemas da ONU (2021-2030), as Conferências do Clima, da Biodiversidade e dos Sistemas Alimentares, o Brasil tem um papel importante a desempenhar em casa e é preciso alinhar este ambiente institucional internacional com o fortalecimento das políticas públicas brasileiras para ganhos na saúde e no meio ambiente imediatamente.
Luís Fernando Guedes Pinto é diretor de conhecimento da SOS Mata Atlântica e membro da Cátedra Josué de Castro.
Ana Paula Bortoletto é pós-doutoranda do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo) e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro.