A reversão da trajetória de destruição da Mata Atlântica é uma grande oportunidade para combater as mudanças climáticas e garantir água e comida para o país
19 de maio de 2021*Artigo publicado originalmente na Ilustríssima, da Folha de S. Paulo. Leia aqui o artigo original.
* Luis Fernando Guedes Pinto e **Mauricio Voivodic
A Mata Atlântica é um dos ecossistemas com maior prioridade para a restauração no mundo, considerando-se os benefícios para a conservação da biodiversidade e a mitigação das mudanças climáticas. Segundo estudo publicado na revista Nature, o bioma faz parte de um grupo de ecossistemas em que a restauração de 15% da sua área evitaria 60% das extinções de espécies previstas, ao mesmo tempo sequestrando o equivalente a 30% do CO2 lançado na atmosfera desde o início da Revolução Industrial.
Por isso, nesta que é a Década da Restauração de Ecossistemas da ONU e a poucas semanas do Dia da Mata Atlântica, em 27 de maio, publicamos uma carta na revista Nature Climate Change cujo objetivo é mostrar a importância de que sua recuperação seja inserida na agenda climática mundial.
O documento reforça para o mundo e para o Brasil que acabar com o desmatamento e restaurar ecossistemas são soluções baseadas na natureza para alcançarmos a meta de 1,5oC de aquecimento global até o fim do século 21. São contribuições para o Acordo de Paris que o Brasil pode alcançar com menor esforço, rapidez e respeitando nossa vocação de potência ambiental, especialmente quando comparadas à substituição definitiva dos combustíveis fósseis.
Há 30 mil anos, a Mata Atlântica era conectada à Amazônia, formando uma única floresta que se separou a partir da última glaciação. Após milênios de interação com povos indígenas, o bioma começou a ser destruído com a chegada dos europeus em 1500 e da instalação dos ciclos econômicos predatórios do pau-brasil, do ouro e do café até meados do século XX. As matas naturais foram destruídas para exportar à Europa e alimentar os brasileiros, populações indígenas foram escravizadas e dizimadas. Hoje resistem 29 grupos étnicos de povos indígenas que vivem em 196 terras. Estão presentes comunidades quilombolas e populações tradicionais como os caiçaras.
Foi uma espécie nativa do bioma que deu nome ao nosso país: o pau-brasil (Caesalpinia echinata). A árvore era derrubada para a construção civil, fabricação de móveis, navios, instrumentos musicais e para tingir roupas. Foi praticamente extinta e hoje ainda é considerada ameaçada. Em 2020 uma árvore de pau-brasil com mais 500 anos foi encontrada no sul da Bahia, uma testemunha da nossa história.
Como resultado destes 521 anos de devastação, apenas 12,4% da vegetação original permanece. O que sobrou está abaixo do limite mínimo aceitável para a conservação da sua biodiversidade, que foi apontada como 30% em estudo publicado na Science. Abaixo deste mínimo, ecossistemas sofrem um processo de autodegradação, reduzindo sua capacidade de manter populações viáveis e prover serviços ecossistêmicos como o abastecimento de água e a polinização de espécies agrícolas.
A Mata Atlântica é um dos mais importantes hotsposts para a conservação da biodiversidade do mundo. Abriga mais de 20 mil espécies, incluindo a maior diversidade de árvores do planeta, 384 espécies de mamíferos e 1.025 de aves. São seis mil endêmicas e um quarto das espécies ameaçadas de extinção no Brasil. Até hoje continuamos descobrindo novas espécies em suas matas.
Apenas 13% da Mata Atlântica é protegida por meio de diferentes tipos de Unidades de Conservação e apenas 9% do bioma é dedicado exclusivamente à conservação. Em algumas sub-regiões, somente 1% da vegetação remanescente é protegida. Embora existam áreas com mais de 10.000 hectares (ha), a maioria dos fragmentos florestais está distribuída de maneira muito desigual em matas com menos de 50 ha e, em 80% dos casos, em propriedades privadas.
Nesta condição de bioma megadiverso, muito ameaçado e altamente fragmentado, a Mata Atlântica foi considerada Patrimônio Nacional na Constituição Federal de 1988. Em 2006 foi publicada a Lei da Mata Atlântica, que protege e orienta a exploração e a conservação da sua vegetação nativa. Também passou a ser reconhecida como uma das Reservas da Biosfera da UNESCO no mundo.
Embora seja o bioma mais ameaçado do Brasil e esteja protegido por diversos instrumentos, a história recente e estudos atuais revelam um futuro preocupante para suas matas. Desde 1990 perdemos mais de 5 milhões de hectares (uma área próxima da metade de Portugal). Foram cerca de 100.000 ha perdidos por ano na década de 90. Com avanços na governança, no controle e fiscalização, na participação da sociedade civil e na tecnologia, o desmatamento caiu drasticamente de 90.000 ha em 2000 para 11.400 ha em 2018. Ainda assim, as mudanças nas políticas ambientais do Brasil fizeram o desmatamento aumentar 30% em 2020.
A aparente estabilidade desde 1985 (com regeneração de novas áreas) oculta a perda de florestas maduras e a degradação de fragmentos, com a morte de árvores grandes e raras e a perda de carbono. Os fragmentos estão se tornando mais isolados e pobres.
Com este quadro preocupante, o bioma abriga 70% da população brasileira, responde por 80% da economia, engloba grandes centros urbanos e industriais, além de ser responsável por grande parte da produção de alimentos do país. Todos dependem dos seus serviços ecossistêmicos, que se encontram sob ameaça. A região se conecta ao mundo através do comércio de commodities como açúcar, café, suco de laranja e celulose.
Apesar de as tendências apontarem para um aumento do desmatamento em todo o país devido ao enfraquecimento do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e às mudanças nas leis e regulamentos, o Brasil havia construído um caminho para controlar o desmatamento. O sucesso foi comprovado pela forte redução na taxa de desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012. Chegou a hora de reconstruir esse caminho, retomando o PPCDAM (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) para garantir que o bioma não alcance o seu ponto crítico de não retorno (tipping point) e não entre na desastrosa trajetória de savanização. Um desastre para o mundo e para o Brasil.
Um novo caminho precisa ser aberto para assegurar a recuperação da Mata Atlântica e reverter o seu ponto crítico, que foi ultrapassado décadas atrás. Além da sua lei específica e de um pacto multisetorial para a sua conservação, o Brasil conta com estruturas e políticas para guiar a proteção e a recuperação da sua vegetação, como o Código Florestal, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (PLANAVEG) e a recém aprovada lei do Pagamentos por Serviços Ambientais.
O PLANAVEG pretende restaurar 12 milhões de hectares no país e o Pacto da Mata Atlântica tem planos de restaurar 15 milhões de hectares até 2050. Entre 4,1 e 5,2 milhões de hectares de matas ciliares também precisam ser restaurados para estarmos em conformidade com o Código Florestal no bioma.
Um forte esforço para realizar a restauração florestal em larga escala, com a implementação do Código Florestal, o aumento da proporção de áreas protegidas, a implantação de uma agenda positiva de incentivos econômicos e novas políticas para combater a degradação florestal, complementaria o atual roteiro para o sucesso das ações de conservação. O objetivo da conservação deve ser reverter o ponto crítico para assegurar a manutenção e a provisão a longo prazo dos serviços ecossistêmicos necessários para a produção de alimentos e o abastecimento de água. Restaurar a Mata Atlântica geraria benefícios não apenas para a população e a economia nacional, mas também para o planeta e a humanidade como um todo.
No contexto da ambição climática, é fundamental a conservação e recuperação das florestas tropicais altamente ameaçadas e fragmentadas. E o caso da Mata Atlântica pode se tornar uma referência. Temos a governança, conhecimento e tecnologia para a sua restauração. O Desafio Bonn e a Década da Restauração de Ecossistemas da ONU fornecem as estruturas internacionais necessárias para conduzir iniciativas de conservação, as quais devem ser complementadas com vontade política internacional, nacional e subnacional, e investimentos do setor privado para benefício da sociedade e das futuras gerações.
* Luis Fernando Guedes Pinto é engenheiro agrônomo, Diretor de Conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica e membro da Rede Folha de Empreendedores Sociais
**Mauricio Voivodic é engenheiro florestal e Diretor Executivo do WWF Brasil