Por Marcia Hirota e Malu Ribeiro*
Uma paisagem devastada e sem vida, tingida por tons de marrom. Uma enorme ferida no meio do vale do rio Paraopeba e do córrego do Feijão, aberta pelo rastro de destruição dos rejeitos contaminados. Tudo envolto por um silêncio fúnebre que, com alguma frequência, é interrompido por sons de helicópteros das equipes de resgate ou de televisão. Às vezes, por uma brisa de esperança e solidariedade – ou apenas pelo sol escaldante que nos devolve à dura realidade. Por ali, gente, rios e vidas que perderam seus cursos, suas histórias e o futuro. Um novo pesadelo. Mais uma tragédia anunciada no Brasil.
Esse cenário de horror teve início na tarde do dia 25 de janeiro com o rompimento da barragem do córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, seguida por outra localizada no mesmo complexo minerário. Mais de 14 milhões de metros cúbicos de rejeito contaminado desceram pelo vale, atingindo a comunidade local, parte do centro administrativo e refeitório da empresa e depois se arrastou por uma área grande e por municípios banhados pelo rio Paraopeba, em Minas Gerais.
Em volume, a quantidade é menor do que o desastre ambiental de Mariana, que afetou a Bacia do Rio Doce, há três anos. Rememorando os fatos, podemos dizer que tudo na verdade começou ali – ou ali poderia ter sido evitado. Mas, desta vez, o dano foi ainda mais grave em vítimas e vidas. Trata-se, portanto, de um novo primeiro e vergonhoso lugar no ranking de maiores tragédias brasileiras, e que pode vir a se tornar o pior desastre humano provocada por exploração de minério no mundo nos últimos 30 anos, de acordo com a Agência de Meio Ambiente das Nações Unidas.
Enquanto escrevemos esse artigo, o número de mortos é crescente e centenas de pessoas continuam desaparecidas. A cada dia que passa, as chances de haver sobreviventes são mínimas, só aumenta o número de pessoas diretamente impactadas com essa devastação.
A equipe da SOS Mata Atlântica chegou em Brumadinho no dia 26 de janeiro para acompanhar de perto e organizar uma expedição pelo rio Paraopeba, que teve início dia 31 de janeiro. Estamos investigando os impactos destes rejeitos e seu potencial de alcance a outras regiões. Nossos técnicos, em parceria com o Laboratório de Poluição Hídrica da Universidade de São Caetano do Sul, analisará a qualidade da água do rio e os impactos do desastre na vegetação e nas comunidades locais por 356 km, de Brumadinho ao reservatório de Três Marias, em Felixlândia (MG).
Até agora, nossos dados comprovam o que tem preocupado a sociedade: o rio Paraopeba está morto. Nos primeiros pontos analisados, no que chamamos de “marco zero” da tragédia – 100 metros antes do rejeito encontrar o Paraopeba –, a situação era ruim. Alguns quilômetros depois, chegando em Mário Campos, a água parecia um tijolo líquido. Na maioria dos pontos ela estava com qualidade péssima. A turbidez da água em muitos locais analisados ficou entre 50 e 100 vezes mais do que o indicado pela legislação para água doce superficial (rios e mananciais). Já a oxigenação chegou a zero em muitos pontos.
Ainda não sabemos até onde o rejeito contaminado irá, mas já podemos afirmar que está passando as duas primeiras membranas de contenção instaladas pela Vale. A diferença da turbidez entre um ponto antes e outro depois das barreiras foi de aproximadamente 50%, conforme medição nos últimos dias. Sendo assim, o rejeito contaminado já está a mais de 90 km de sua origem e já é encontrado na cidade de Pará de Minas. Continuaremos nossa expedição para saber dos reais impactos desta tragédia.
A Bacia Hidrográfica do rio Paraopeba alimenta a Bacia do rio São Francisco e é um dos principais mananciais de abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A qualidade da água do rio Paraopeba antes da tragédia variava de regular para boa, segundo dados do Comitê de Bacias da região. A nova situação ambiental agrava o risco de escassez hídrica na região, já que o rejeito de minério – com grande concentração de rejeito, ferro e metais pesados – asfixia os rios, deixando-os completamente sem oxigênio e com elevada turbidez.
Cabe ressaltar que muitas barragens no Brasil estão localizadas próximas das áreas de cabeceiras de rios e o potencial de danos é altíssimo. O risco iminente do rompimento afeta bacias hidrográficas inteiras – e ameaça a vida de pessoas, cidades, áreas produtivas e serviços ambientais essenciais para a população.
Além do urgente e prioritário socorro às vítimas, e de imediatas iniciativas para recuperação e compensação dos danos ambientais, é necessária a punição dos responsáveis e a abertura de processos contra a administração da Vale e a exigência de indenizações justas da empresa. Porém, lembramos que a Samarco, que tem a Vale entre suas acionistas, ainda não pagou os R$ 350 milhões que deve ao Ibama em multas por conta do rompimento da barragem em Mariana e até agora ninguém foi condenado. O processo na Justiça sequer foi julgado.
A recomendação do gabinete de crise criado pelo governo federal de que órgãos reguladores fiscalizem imediatamente todas as barragens, com ênfase para as que apresentam risco de “dano potencial” à vida humana, é uma iniciativa correta nesse sentido, mas que já deveria ter ocorrido antes, desde Mariana.
É imprescindível que o governo brasileiro aja de forma preventiva para que não tenhamos novos desastres como esse. A partir daqui, qualquer atividade econômica de grande porte e de alto risco precisa ter planos de contingência efetivos e passar por rigoroso controle, monitoramento, fiscalização e identificação dos seus responsáveis. Até empreendimentos menores devem ter uma análise de risco bem elaborada, uma vez que qualquer atividade gera impacto ambiental, seja qual for seu tamanho.
Outro motivo de preocupação é a intenção dos governos, de alguns parlamentares e de setores econômicos de flexibilizar a legislação e os processos de licenciamento ambiental. O Brasil não pode afrouxar suas leis, mas sim fazer com que sejam cumpridas de forma célere. O Estado deve qualificar seus mecanismos reguladores e de governança, ter estrutura adequada e profissionais para atender às demandas com agilidade, além de planos de prevenção, emergências e contingências capazes de mitigar desastres como esse.
Por fim, deve-se ampliar a responsabilidade das empresas atuantes no país, que precisam assumir, de forma definitiva, seu compromisso com políticas socioambientais. É alarmante acontecer um desastre como esse depois de Mariana.
Que esse crime, com o custo de tantas vidas e danos irreparáveis, seja punido com rigor. É isso que a sociedade espera.
*Marcia Hirota e Malu Ribeiro são, respectivamente, diretora-executiva e especialista em Água da Fundação SOS Mata Atlântica.