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Entrevista com Clayton Lino: um naturalista no século XXI

7 de junho de 2022

Por Mônica C. Ribeiro

 

Há 50 anos, Clayton Lino entrava em uma caverna pela primeira vez na vida, no Vale do Ribeira, experiência que o levou a direcionar sua atuação para a área ambiental. Foi lá que o físico-arquiteto-antropólogo-espeleólogo viu pela primeira vez a Mata Atlântica, na Serra do Mar. A ocasião foi também seu primeiro contato com a região do Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira), que ele ajudou a implantar  e do qual foi o primeiro gestor.

A aventura, em uma caverna extremamente difícil, em que se movimentou por buracos esguios, teto baixo e rios subterrâneos, foi um batismo bem-sucedido, que o levou a ter uma atuação fundamental para a conservação das cavernas brasileiras e da Mata Atlântica.

Lino teve participação ativa na legislação ambiental consolidada na Constituição de 1988, está entre os fundadores da SOS Mata Atlântica e do ISA (Instituto Socioambiental), ajudou a criar a figura da RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), foi o propositor da figura dos Mosaicos de Áreas Protegidas e trabalhou para incluí-las no SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). Também  ajudou a criar a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, onde atua até os dias de hoje. E integra o Conselho da SOS Mata Atlântica.

Permaneceu muitos anos à frente da presidência do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, participou como fotógrafo da primeira expedição brasileira à Antártida e foi presidente da Sociedade Brasileira de Espeleologia por duas vezes.

Recentemente esteve em Brasília, participando da mobilização contra o decreto presidencial 10.935, de janeiro deste ano, que coloca em risco como nunca antes as cavernas brasileiras. Apesar de reconhecer que o movimento ambientalista tem sido forçado a atuar predominantemente na defensiva contra retrocessos e ameaças nos últimos anos, se mantém otimista quanto à reação da sociedade. 

Temos projetos de lei tentando desorganizar o SNUC, a Lei da Mata Atlântica, as áreas protegidas, o Código Florestal, quer dizer, toda a questão ambiental, social e cultural do Brasil está não só sendo ameaçada, mas já aconteceram vários retrocessos importantes. Mas eu sou otimista. Sei que todo mal também passa. A pandemia da covid-19 dificultou muito a mobilização, a gente só podia colocar nas redes sociais, fazer abaixo assinado virtual. É muito diferente quando a sociedade pode se reunir em um espaço, se manifestar, mostrar a concentração de pessoas em torno de uma causa. Tenho visto agora uma reação da sociedade que espero que cresça muito.

Em entrevista à SOS Mata Atlântica, Lino rememora a criação da Fundação e a atuação dos ambientalistas logo após a redemocratização brasileira, fala sobre a situação das cavernas brasileiras, a importância da criação do Atlas da Mata Atlântica, retrocessos e caminhos do ambientalismo para o futuro do país e sobre a sua atuação, tal como um ‘naturalista dos séculos XIX’, misturando áreas e conhecimentos para atuar pelo bem do planeta.

“Me caracterizo como uma pessoa que não tem esse limite das disciplinas. Porque acho que isso permite ter uma relação melhor com o planeta. Todas essas coisas são muito integradas. No planeta é assim. A gente é que divide.”

 

Lembrança de uma das primeiras grandes exposições feitas pela SOS Mata Atlântinca (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)

 

– Você tem formação em física, arquitetura e antropologia, é espeleólogo…como as suas várias formações contribuem para o modo como você vê e se aproxima da natureza?

Essas formações não foram uma coisa planejada. Eu nasci em Franca, interior do estado de São Paulo, e depois vim para a capital com a ideia de ser físico, queria ser físico nuclear. Cursei física até o último ano. Só que nesse processo eu conheci a arquitetura. E à medida que fui descobrindo a arquitetura, vi que tinha muito a ver comigo. Até em parte por ser várias coisas em uma só. Você se forma em arquitetura e pode fazer teatro, fotografia, pode trabalhar com urbanismo, com patrimônio histórico, paisagismo, e assim por diante. Essa riqueza da profissão me chamou muito a atenção. Fiz física até o último ano, mas o último exame eu entreguei em branco, embora soubesse todas as respostas, porque não queria passar, queria a transferência para a arquitetura.

Depois fiz meu mestrado em antropologia. Eu estava bem adiantado na preparação do material e preparando também a dissertação, mas eu já era espeleólogo e conheci, no Congresso de Espeleologia na época, uma pessoa, Lélia Rita, que viria a ser a primeira secretária de meio ambiente do então recém-criado estado do Mato Grosso do Sul. Ela queria desenvolver turismo e meio ambiente. E me chamou para ir até lá e fazer o trabalho de levantamento dos atrativos turísticos e ambientais do novo estado. E aí fui para Bonito, que ninguém conhecia na época, e que virou depois a capital brasileira do ecoturismo. Fui até as cavernas, fiquei com os índios Kadiwéu, com os Terena, enfim, passei quatro meses lá.

E depois apareceu outra coisa. Eu já trabalhava com fotografia e espeleologia, e o Ibama me chamou para ser o fotógrafo da primeira expedição brasileira para a Antártida, que aconteceu no final de 1982 para 83. Era irrecusável. Expliquei para o meu orientador e ele me disse que eu precisava resolver se ia fazer o mestrado ou ia para a Antártida. Aí me caiu a ficha e eu fui para a Antártida. Esse foi o fim do meu mestrado em antropologia. Mas continuo apaixonado pela antropologia, estudando o tempo todo e vivendo ela no meu trabalho, na abordagem sobre essa relação do homem com a natureza, principalmente no caso das comunidades tradicionais.

Todas essas coisas são muito integradas. No Planeta é assim. A gente é que divide. Eu, embora não tenha o diploma da física, eu uso muito e adoro a física. É uma forma de pensar, de enxergar o mundo. A mesma coisa com a arquitetura, com a biologia e com a antropologia.

 

– Como a espeleologia entrou na sua vida? Em uma entrevista concedida ao Museu da Pessoa você disse que tudo o que faz hoje é porque entrou em uma caverna na Serra do Mar…

Sempre fui muito ligado à natureza, meu pai tinha fazenda e eu o acompanhava até lá todo fim de semana, adorava. Minha mãe sempre teve esse vínculo de encantamento pela natureza. Isso com certeza me influenciou. Sempre tive uma relação com a natureza que foi cordial, de encantamento.

Eu ainda era estudante de física no Mackenzie, mas já frequentava o diretório da arquitetura. Lá eu encontrei dois colegas de Rio Preto, que faziam antes, como eu, teatro amador. A ditadura fechou todas as atividades desse tipo, mas eu os reencontrei em São Paulo, quando me mudei para cá. E um deles, já sabendo que eu gostava de natureza, me contou sobre um grupo na USP que fazia expedições, canoísmo, montanhismo etc., que era o CEU (Centro Excursionista Universitário). Fui até lá com esse colega para acompanhar uma reunião. Ele nunca mais voltou e eu nunca larguei, até hoje sou sócio do CEU. No dia em que cheguei, acontecia uma apresentação de slides de uma turma que tinha ido pela primeira vez até o Vale do Ribeira, exatamente na região do Petar. Voltaram encantados. E, logo depois, na Semana Santa de 1972, eu participei de uma excursão até lá. Foi aí que vi pela primeira vez a Mata Atlântica, a Serra do Mar, as comunidades tradicionais da região, o Petar, e entrei pela primeira vez em uma caverna.

A minha primeira caverna foi muito difícil. Começava com um buraco no chão, descia um metro e meio e saía no escuro, dentro de um abismo de 20 metros, descendo em uma escada de cabo de aço e degraus de alumínio. Depois a gente chegava em um rio subterrâneo, seguia por 80 metros de teto baixo. Eu tinha uma barba muito grande nessa época e fiquei literalmente com as barbas de molho. E no fim saímos em um salão enorme, ornamentado, lindíssimo. Nessa hora eu me escutei falando para mim mesmo: é isso! Tinha descoberto uma coisa que eu nem estava procurando, nem tinha ideia que existia. Mas eu sabia que aquilo era para sempre. Tanto que essa experiência mudou a minha vida de vez.

Em abril de 2022 aconteceu em Brasília o 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia, e fizeram uma surpresa muito emocionante pelos meus 50 anos de cavernas. Já fui presidente da Sociedade Brasileira de Espeleologia duas vezes. As cavernas mudaram minha profissão, minha relação com a natureza, com as pessoas. Junto a isso se colocaram para mim as questões das comunidades tradicionais da Mata Atlântica.

Ou seja, eu realmente comecei a atuar na parte ambiental por causa das cavernas. Fiz especializações em áreas protegidas, manejos de recursos naturais, viajei pelo mundo afora, virei um “mix de profissões”. E continuo com esse perfil do século XIX, naturalista, de misturar as coisas. O que acho que foi um enorme privilégio para a minha vida. Desejaria isso para todos os meus filhos.

 

Com o amigo, Scala, em uma de nossas explorações pelas cavernas brasileiras (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)

 

– Como vai a área de conservação de cavernas no Brasil? Houve uma mobilização em abril deste ano contra um decreto presidencial, o 10.935/2022…

Eu estava lá, na mobilização. O Brasil, apesar de tudo, ainda é o país que tem a melhor legislação de proteção de cavernas no mundo. Isso foi uma construção bem-feita, envolvendo toda a comunidade espeleológica. O ponto principal, talvez a maior contribuição que tenhamos dado para isso, aconteceu durante o processo de elaboração na Constituição de 1988. O Fábio Feldmann era constituinte, havia uma comissão de meio ambiente da qual eu fiz parte, com muitas outras pessoas, e destacamos que precisávamos proteger as cavernas de alguma maneira na Constituição. E fizemos isso colocando as cavernas (cavidades naturais subterrâneas) como bens da União. O que se seguiu foi que o Brasil passou a ser o primeiro país democrático onde todas as cavernas são bens da União, não temos caverna privada. E também as colocamos como parte do patrimônio cultural e científico.

Essa foi a grande base, e a partir dela vieram Resoluções CONAMA, decretos, a criação do CECAV (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas), ou seja, a gente institucionalizou tudo isso na linha da conservação. Havia um decreto que estabelecia que nenhuma caverna, em nenhuma hipótese, poderia ser destruída. Aí em 2008 veio o decreto 6.640, que colocava a relevância de cavernas e estabelecia que aquelas de máxima relevância não poderiam ser destruídas, e que outras poderiam sofrer impacto por razões específicas. O critério de relevância é inadequado, porque só tem sentido se for utilizado de forma  comparativa, não como dado absoluto. A partir de estudos podemos definir a relevância de uma caverna por seus atributos identificados, mas não podemos dizer se ela é irrelevante. Toda caverna em princípio é importante até que se prove o contrário. E essa legislação trouxe um outro raciocínio, que é que nenhuma caverna é importante até que se prove o contrário.

Só que agora temos o pior de todos os decretos, a maior ameaça que já existiu às cavernas brasileiras, que é o 10.935, assinado por Bolsonaro em janeiro deste ano, que diz que cavernas de máxima relevância podem ser destruídas também. É uma irresponsabilidade total. Isso foi parar no STF (Superior Tribunal Federal), houve uma manifestação do ministro Ricardo Lewandowski suspendendo, mas ainda vai para o plenário. Fizemos todos uma manifestação no STF, há uma moção no Congresso com apoio de centenas de instituições científicas, ambientalistas, do Brasil e internacionais. Estamos, nesse momento, dependendo do STF se manifestar. Temos muita esperança de que esse retrocesso não aconteça.

Sempre vamos ter que lutar, o mesmo para a Mata Atlântica, para o Cerrado, para a Amazônia e os demais biomas brasileiros. Mas alguns momentos são muito tristes na história brasileira. Uns por ignorância no sentido puro da palavra, quer dizer, não saber o que se está fazendo, e outros por ignorância de ruindade mesmo, de falta de visão. Ignorância no sentido mais triste da palavra, que é não perceber que, se não tivermos sustentabilidade, o país não tem futuro.

 

– No período de articulação das organizações ambientalistas no período pré e durante a Constituinte havia uma mobilização grande, mas com um horizonte de conquistas muito positivo. Hoje a mobilização tem sido para não perder o que se conquistou desde então…

Hoje nós estamos atuando na defensiva. É muita ameaça, muita pressão. Temos projetos de lei tentando desorganizar o SNUC, a Lei da Mata Atlântica, as áreas protegidas, o Código Florestal, quer dizer, toda a questão ambiental, social e cultural do Brasil está não só sendo ameaçada, mas já sofreu vários retrocessos importantes. Mas eu sou otimista. Sei que todo mal também passa. A pandemia da covid-19 dificultou muito a mobilização, a gente só podia colocar nas redes sociais, fazer abaixo assinado virtual. É muito diferente quando a sociedade pode se reunir em um espaço, se manifestar, mostrar a concentração de pessoas em torno de uma causa. Tenho visto agora uma reação da sociedade que eu espero que cresça muito.

Temos que lutar pela cultura independentemente de quem sejam os dirigentes, seja no legislativo ou no executivo do país. Deveria ser uma luta de toda a  sociedade. Mas, como a sociedade está muito polarizada no Brasil nesse momento, se você defender uma coisa automaticamente está de um lado ou de outro. Eu acho uma tristeza o que está acontecendo no Brasil. Mais do que tristeza, é raiva mesmo. Tínhamos dado muitos passos no país, caminhamos muito nas últimas décadas, quiçá com um problema aqui e ali todo o tempo, claro. Mas havia um caminho que o país estava trilhando, estava crescendo, melhorando, tendo mais equidade. Agora, temos um grau de ataque a tudo que já tínhamos conquistado. Vamos ter que reconquistar.

E não temos opção a não ser esta. O mercado de commodities brasileiro, se não mudar, vai sofrer muito com isso. Tem gente aproveitando a alta do dólar, mas quem ganha com isso? Muito pouca gente. Estamos aumentando o maior problema que o Brasil sempre teve, que é a desigualdade. E não é que esteja faltando dinheiro no país. É que ele está em poucas mãos. Em um quadro desses, junto com o retrocesso das instituições, da legislação, é extremamente difícil o trabalho no meio ambiente.

E ainda tem a questão da violência, somos o quarto país que mais mata ambientalistas no Planeta. Com uma população passando necessidade, fica ainda mais difícil conservar. É uma situação muito grave e difícil. Mas eu insisto em ser otimista, porque já vi também outras situações muito ruins que nós tivemos. Eu espero que haja uma reação civilizatória do Brasil.

 

Manifestação pela proteção das cavernas, em frente ao STF, após o 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)

 

– A primeira campanha da Fundação SOS Mata Atlântica, Estão tirando o verde da nossa terra, nunca foi tão atual, o Brasil foi de referência ambiental a pária…

A SOS Mata Atlântica, a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, a Rede de ONGs da Mata Atlântica, e mais tarde o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, todas essas entidades pegaram um momento muito bom, fruto da redemocratização do país. O movimento ambientalista foi o primeiro movimento de cidadania que não foi impedido de atuar naquele momento. Achavam que era ‘frescura’, coisa de idealista. E quando descobriram o que estávamos fazendo, já tínhamos mexido em coisas muito importantes. E isso vinha para ficar. É um movimento que teve um avanço brutal em poucas décadas. A redemocratização abriu espaço e o movimento ambientalista ocupou uma parte importante desse espaço.

Uma segunda coisa foi a possibilidade, também em decorrência da abertura democrática, a Constituição de 1988, de um avanço na discussão ambiental, que ganhou peso aqui e no mundo. Nós criamos uma Constituição muito avançada nessa área. Continua avançada se comparada com a legislação da maior parte dos países.

Um terceiro ponto é que logo após tivemos a Eco 92 no Brasil. A preparação da Eco 92 (Rio 92) foi extremamente rica. E aqui, no caso de São Paulo, desde o começo da década de 1980, a criação do Consema no governo Montoro [embrião da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo], a luta contra as usinas nucleares e proteção da Juréia, pela implantação do Petar e pela Ilha do Cardoso, enfim, as coisas começaram a acontecer e tivemos uma ‘conjunção dos astros’ que juntou todo mundo. Esse grupo inicial ocupou o governo, em parte se manteve no empresariado, na mídia, e ao mesmo tempo nas organizações da sociedade civil. As pessoas se conheciam, e todo mundo trabalhou junto.

Aconteceu então o movimento SOS Mata Atlântica. E é desse movimento que saem essas entidades todas. A SOS Mata Atlântica é a resposta maior que a gente deu, e com a criação dela veio a campanha, que foi muito marcante: Estão tirando o verde da nossa terra. Ela chamou a atenção para um bioma sobre o qual ninguém falava.

 

– E como foi começar a falar sobre a Mata Atlântica?

No começo, a gente sempre tinha a dúvida sobre onde era a Mata Atlântica e onde não era. Havia um consenso de que a Serra do Mar era Mata Atlântica, mas parava aí. Me lembro de um episódio em que vieram algumas pessoas até a sede da Fundação e nos perguntaram se a região de Airuoca, em Minas Gerais, ficava em área de Mata Atlântica. Respondemos que achávamos que sim. E aí nós concluímos que precisávamos parar de achar e ter certeza.

Veio então o Atlas da Mata Atlântica. Precisávamos ter um retrato de corpo inteiro do bioma. Comecei o trabalho com o Eduardo Brondizio, que era um técnico da Fundação e hoje tem trabalhos internacionais muito importantes em biodiversidade. Ele foi a pessoa que trabalhou junto ao INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) para usarmos as imagens de satélite. Para traçar esse retrato, precisávamos saber qual era o território em que estava a Mata Atlântica. Fizemos um workshop em que compareceram mais de 40 cientistas de ponta, pessoas engajadas e inteligentes como Aziz Ab’Saber, Almirante Ibsen, José Pedro de Oliveira Costa, Paulo Nogueira Neto, enfim, e a pergunta era essa – onde é a Mata Atlântica? Dali tiramos o que foi a base para o próprio trabalho do IBGE.

Sobraram algumas questões pendentes depois disso, ao longo dos anos. Por exemplo, as araucárias, que os paraenses não queriam que fosse Mata Atlântica, porque era o pinheiro do Paraná, tinha uma identidade própria e tal. Mas que são uma das formações florestais que compõem o bioma Mata Atlântica. Foi uma luta para aceitarem, mas hoje é um consenso positivo para proteção dessa espécie tão ameaçada. O Ceará, tem Mata Atlântica ou não? O que é aquilo que ocorre nos Brejos de Altitude no Ceará e no Nordeste? É Amazônia? É uma Caatinga diferenciada? É Cerrado? O que é? Enquanto Reserva da Biosfera, contratamos cientistas para irem até lá e tirarem essas dúvidas. Isso demonstrou, cientificamente, que a fitofisionomia, a estrutura, as espécies dominantes são parte da Mata Atlântica.

Foi uma construção de mais de uma década. No começo, acima de Salvador não havia imagens de satélite que possibilitassem bons levantamentos. Era só cobertura de nuvens. Chove pouco mas tem muitas nuvens naquela região. Então não conseguíamos ver, as nuvens não permitiam uma cobertura que nos mostrasse a evolução. O primeiro Atlas ia até Salvador, na Bahia. E o pessoal do Nordeste reclamou bastante que era preciso ter esse levantamento mais acima. Só anos depois conseguimos ter imagens que permitissem que o Atlas pegasse todo o território.

E ele virou o Atlas não da situação, mas da evolução da Mata Atlântica. O resultado do trabalho começou a mostrar, infelizmente, que a notícia frequente era o permanente desmatamento. Esse era o grande indicador. E com isso fortaleceu-se   a luta pelo bioma. A Mata Atlântica começou a ganhar cada vez mais espaço na mídia. A cada vez que soltávamos as notícias do Atlas era uma pressão grande em cima de alguns estados, e isso teve muito efeito. Foi uma campanha exitosa em todos os sentidos, diminuindo o desmatamento, divulgando a importância e as ameaças a essa floresta, ganhando reconhecimento internacional.

Esse trabalho tem um peso. Talvez seja o projeto mais importante da história da SOS Mata Atlântica. Foi iniciado logo no começo da Fundação e vem se desenvolvendo, se aprimorando tecnologicamente, não ficou parado no tempo. Chegou à escala municipal e agora entramos na fase dos alertas de desmatamento.

 

 

Um pequeno Bem-te-vi no Parque das Dunas, em Salvador. (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)

 

–  Você estava na fundação da SOS Mata Atlântica, naquele momento inicial, das articulações. Como você vê a evolução da organização ao longo do tempo?

A SOS Mata Atlântica mudou bastante. Em algumas coisas acho que é uma adaptação aos novos tempos e em outras uma mudança de estratégia. Tivemos alguns tempos difíceis, com pouca disponibilidade de recursos. Depois se tornou, em média – porque recurso para conservação sempre falta – uma instituição estável economicamente. Isso permite a ela fazer muita coisa.

Mas isso não vem do nada. Foi construído a partir de uma visão incrível, estratégica mesmo, e várias pessoas tiveram e têm contribuições muito marcantes nisso. Roberto Klabin, que foi presidente tanto tempo e que fortaleceu essa parte econômica, acho que a própria visão empresarial dele ajudou muito nesse sentido. Mas não é só a questão de recursos. Foi a criação de qualidade e de reputação contando com equipe muito competente. A Fundação é um fenômeno de comunicação. Hoje qualquer um no Brasil, e em muitos lugares fora do país, sabe o que é a SOS Mata Atlântica. Você pergunta a um artista se ele quer fazer uma campanha com a Fundação e ele sabe o que é a SOS Mata Atlântica e quer fazer.

Ou seja, é um círculo virtuoso. Que foi produzindo coisas, divulgando com uma competência muito grande, e teve o peso da mídia como fundamental na nossa história.O Rodrigo Mesquita, o Randau Marques, dentre outros, são pessoas que ajudaram a colocar a Mata Atlântica como pauta geral para a própria mídia. E a mostrar para os brasileiros a importância e as ameaças. Essa reputação foi se construindo no campo da comunicação, no campo dos projetos com resultados, com informação. A SOS Mata Atlântica é uma geradora de conhecimento, tem dados concretos.

Tem ainda a questão do envolvimento, da mobilização, que a organização também faz muito bem. Desde os voluntários, do trabalho do Viva a Mata, ou seja, a mobilização das campanhas todas, envolvimento de jovens. A SOS Mata Atlântica foi conquistando em cada uma dessas áreas uma maior profundidade. E foi abrangendo outras áreas. Entrou na questão das águas, das cidades, do mar, das políticas públicas. Foi agregando coisas, se modernizando, conquistando espaço e ampliando parcerias. A Marcia Hirota, o Capobianco, o Mario Mantovani, o Belô, a Malu Ribeiro, juntamente com os conselheiros foram pessoas-chave. 

Mas algumas coisas mudaram sim. Lá no começo havia mais ambientalistas no conselho. Havia um engajamento muito grande, essas pessoas eram também aquelas que estavam na linha de frente. Hoje nós temos um conselho diferente, com mais gente da área financeira, por exemplo, e da área da mídia. Mas essa diversidade sempre aconteceu. Hoje, às vezes a gente gasta bastante tempo discutindo as finanças numa reunião, muito mais do que antigamente. Mas isso é bom, porque é a garantia de que as equipes técnicas possam fazer o seu trabalho, e o fazem muito bem. Hoje o conselho cumpre seu principal papel, que é garantir a estabilidade política, econômica, as grandes diretrizes para a Fundação. Isso também a gente foi aprendendo. E é uma fórmula que deu muito certo.

 

– A Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA) foi a primeira criada no Brasil, muito reflexo de toda essa movimentação que falamos aqui. A rede de organizações que a compõem é bastante ativa. Como se dá essa integração e atuação?

Foi mesmo a primeira, e começou pequena. Tínhamos só três áreas na fase 1 – o Vale do Ribeira, com o Petar, um pedacinho do litoral do Paraná e a área da Reserva Biológica de Tinguá, no Rio de Janeiro. Não estavam conectadas. Fomos juntando outras áreas nas fases seguintes, e hoje já estamos na fase 7, com quase 90 milhões de hectares. Desde a fase 4 nós nos tornamos a maior Reserva de Biosfera do mundo. E continuamos crescendo. Hoje, existem 727 Reservas da Biosfera em 131 países, reunidas pelo programa MAB (Man and Biosphere), da Unesco.

Além de ser a maior delas, a Reserva da Mata Atlântica é muito ativa, justamente por ter um sistema de gestão muito inclusivo. São mais de 250 instituições envolvidas. Há comitês estaduais nos 17 estados que compõem o bioma. Dentro de cada comitê às vezes há subcomitês. Há representantes de municípios via ANAMMA (Associação Nacional de Municípios de Meio Ambiente). E postos avançados, unidades de gestão descentralizada, além de muitos parceiros que não são parte direta do sistema de gestão. Esse modelo criou uma rede permanente e com uma atuação que não tem par no Brasil.

O sistema de gestão é paritário, metade governamental e metade não governamental. O programa é governamental e internacional, mas nós criamos aqui a primeira Reserva da Biosfera com autonomia efetiva, com um Conselho Deliberativo, definido em lei. E a RBMA, assim como as 7 grandes Reservas da Biosfera no Brasil, não é apenas uma caixinha do Ministério do Meio Ambiente. Estão todas vinculadas ao comitê do MAB-Unesco no Brasil. O Conselho da RBMA foi o primeiro conselho desse tipo, paritário, no Brasil. 

Na metade não governamental temos representantes de ONGs eleitos por região, pesquisadores ligados a instituições de pesquisa, representantes de comunidades e setor empresarial. Tem mesmo essa característica de articulação multilateral. Isso é uma característica da Reserva, que inclusive teve seu sistema de gestão tomado como modelo para muitas outras e ganhou prêmio da Unesco por isso.

A Reserva da Biosfera da Mata Atlântica é, sobretudo, essa grande articulação. Os parceiros são muito importantes. Temos o Projeto Tamar, por exemplo, que tem três postos avançados da Reserva, que hoje já são cerca de 70, nos vários estados e com vários perfis. Ou seja, à medida em que eles estão fazendo aquele trabalho maravilhoso, estão implantando a Reserva da Biosfera. Temos uma visão que não é autocentrada. Queremos que a conservação, o desenvolvimento sustentável e a produção de conhecimento científico, bem como a valorização do conhecimento tradicional, que são as funções da Reserva, estejam acontecendo de maneira participativa. Tudo o que a gente faz é por meio de parcerias. Assim nossa equipe técnica, que é muito competente e comprometida, consegue multiplicar suas ações e engajar pessoas e instituições.

 

Como presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica no evento da Semana do Meio Ambiente na Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo (Foto: Arquivo Pessoal de Clayton Lino)

 

– A gente mora dentro da Mata Atlântica. Consumimos e comemos muitos produtos desse bioma. Qual a importância, em termos de mobilização, de se falar também dessa economia da Mata Atlântica?

Existe uma enorme economia da Mata Atlântica. Primeiro temos que lembrar que esse é o bioma onde vivem 2/3 da população brasileira. Tivemos uma história predatória como poucos biomas no mundo. Mesmo assim, temos uma incrível biodiversidade no que sobrou da floresta, incluindo muitos produtos nativos de grande interesse econômico – como a erva mate, caju, pinhão, palmitos, inúmeras fibras, plantas medicinais, plantas ornamentais etc.

A erva mate, por exemplo, é nativa da Mata Atlântica. Mais de 450 municípios têm essa espécie dentre as suas maiores fontes de renda. A cadeia direta e indireta gera cerca de 600 mil empregos. É o mesmo que a indústria automobilística brasileira em termos de número de empregos. E melhor distribuídos.

Temos o pinhão, a carqueja, o gengibre brasileiro, a espinheira santa. Várias espécies no campo dos fitoterápicos e de cosméticos. Mas a maioria delas são pouco exploradas de forma planejada e acaba acontecendo uma extração predatória porque não se apoiou adequadamente esse desenvolvimento. É preciso mais pesquisa, apoio para o desenvolvimento, às vezes investimento em melhoramento genético. Nós temos aí aspectos culturais, aspectos de pesquisa e de economia a serem melhor articulados. Se bem manejadas geram riqueza sustentável para comunidades locais e para o país como um todo.

Temos paisagens deslumbrantes e culturas associadas com grande uso e potencial turístico. Temos água e imensuráveis serviços ambientais que sustentam nossas cidades, indústrias, agricultura, produção de energia e outras necessidades da nossa população. Essa economia da floresta em pé tem que ser reconhecida e valorizada. Esse é o foco, por exemplo, dos Programas Mercado Mata Atlântica, Turismo Sustentável e Ativos Ambientais da Reserva da Biosfera.

Na atual crise climática, o maior potencial do Brasil cumprir com suas obrigações de reduzir emissões está no controle das queimadas e desmatamento na Amazônia, mas o maior potencial de retirada de CO2 da atmosfera gerando muitos recursos financeiros com o novo Mercado de Carbono está na restauração da Mata Atlântica. E a cadeia de restauração pode gerar muitos milhares de empregos e renda em todo o território. A conservação, o bom manejo e a restauração de nossa natureza deveriam ser um dos principais pilares da economia para o Brasil.   

E precisamos lembrar que mais de 80% da área da Mata Atlântica remanescente está em terras privadas. Então, é preciso também engajar os proprietários rurais no bom manejo dos recursos naturais e na sua conservação. Um bom exemplo disso são inúmeras reservas particulares, as RPPNs, existentes da Mata Atlântica.

Participei da criação da figura das RPPNs em 1990. Na elaboração da lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), colocamos as RPPNs no grupo de unidades de uso sustentável. Originalmente, havia um artigo que citava que poderia haver exploração e manejo de recursos florestais não madeireiros, desde que dentro de um plano de manejo aprovado. Só que quando essa legislação foi para sanção presidencial, essa parte foi vetada, aprovaram só proteção integral. E o que restou foi uma situação esquizofrênica no caso das RPPNs, que são classificadas como de uso sustentável, mas o único uso sustentável possível com potencial retorno econômico por lei nessas reservas é o turismo.

Eu sempre digo que não quero ver a criação da associação dos RPPNistas arrependidos, ou filhos e netos com raiva dos avós RPPNistas. Porque é difícil manter uma área com essas características. Não basta paixão. A paixão está lá, a criação de uma RPPN é uma prova de amor. É totalmente voluntária. A pessoa faz porque acredita, quer dar sua contribuição, deixar um legado que é perpétuo. Algumas dessas áreas têm paisagens, cachoeiras, trilhas que podem ser exploradas de algum modo em atividades turísticas. Mas outras não e, no entanto, são importantíssimas por terem uma flora e fauna específica, uma paisagem especial, ou por serem anteparo no entorno das unidades de conservação de proteção integral. Precisamos apoiar concretamente as RPPNs para que elas se mantenham e sejam mecanismos efetivos também no desenvolvimento sustentável.

As possibilidades de uso sustentável são grandes, mas isso não está na lei das RPPNs. É possível trabalhar com produção de sementes, de mudas, plantas medicinais, plantas ornamentais, frutos, castanhas, mel, e assim por diante. Há um campo enorme para explorar a economia da Mata Atlântica.

 

Campanha pela defesa do Código Florestal, em 2012, durante o Viva a Mata, no Ibirapuera (Foto: Arquivo pessoal de Clayton Lino)

 

Por último, eu gostaria de reforçar a necessidade de que, na luta pela Mata Atlântica e demais ecossistemas brasileiros, dentre nossas prioridades esteja, com destaque, o engajamento dos jovens, a defesa de nossa democracia, da sustentabilidade, da equidade e da inclusão, contribuindo para a retomada do protagonismo ambiental de nosso país. Só assim teremos um futuro que vale a pena.  

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