marco tanaka
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Reflexões sobre a não incidência do regime de uso consolidado da Área de Preservação Permanente (APP) no Bioma Mata Atlântica

16 de outubro de 2020

O Bioma Mata Atlântica, abrigado em 17 estados brasileiros, já foi dizimado em quase 90% da sua área original. Segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica do período 2017-2018, produzido pela Fundação SOS Mata Atlântica em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, restam hoje apenas 12,4% de florestas naturais acima de 3 hectares, incluindo as matas regeneradas, podendo esse percentual subir para 26% se consideradas áreas acima de 1 hectare1.

E o pouco que resta de Mata Atlântica no país continua sofrendo todo tipo de pressão, apesar da rigorosa legislação que protege o bioma, a saber: Lei 11.428/06 (e seu regulamento, decreto 6.660/08), antecedida pelo decreto 750/1993, antecedido este, por sua vez, pelo decreto 99.547/90.

A mais recente ameaça vem do Governo Federal, mais precisamente de um despacho do Ministro do Meio Ambiente. Trata-se do Despacho 4.410/20, publicado no dia 6 de abril, que aprova a Nota 00039/2020/CONJUR-MMA/CGU/AGU, baseada no Parecer nº 00115/2019/DECOR/CGU/AGU, aprovado pelo Advogado-Geral da União, que, em apertadíssima síntese, dispõe que o regime de uso consolidado das Áreas de Preservação Permanente (APP) instituído pelo Código Florestal de 2012 (Lei 12.651/12) incide sobre o Bioma Mata Atlântica. O entendimento validado pelo Despacho 4.410/2020 é vinculante para todas as entidades do MMA.

O uso consolidado de APP está previsto nos arts. 61-A e 61-B da Lei 12.651/12. Estes artigos autorizam a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural (assim como das residências e da infraestrutura associada a tais atividades) em Áreas de Preservação Permanente rurais, consolidadas até 22 de julho de 2008, mediante a recomposição de apenas uma parte da APP ocupada, em extensão significativamente menor do que a extensão normal da APP estabelecida no art. 4º do Código Florestal.

Já não cabe mais questionar, em termos práticos, a constitucionalidade do regime de uso consolidado de APP, haja vista que o STF o reputou constitucional quando decidiu a ADIn 4.9022. O que se questiona, portanto, é se esse regime de uso consolidado pode ser aplicado no Bioma Mata Atlântica, e, caso possa, se ele se sobreporá às normas que, pelo menos desde 1990, por conta do Decreto 99.547/90, estabelecem restrições ao corte, supressão e exploração do bioma, independentemente da área ser ou não uma APP.

A construção do raciocínio jurídico não é tão simples mas a conclusão a que ele nos leva é uma só: o regime de uso consolidado das APPs não se aplica indistintamente à Mata Atlântica.

Primeiramente, o óbvio: o Código Florestal é uma lei geral, aplicável às florestas e demais formas de vegetação do país. Ou seja, incide sobre todos os biomas, inclusive sobre a Mata Atlântica. A Lei da Mata Atlântica é uma lei especial, que incide unicamente sobre este bioma.

Disso se extrai que a proteção da Mata Atlântica se dá, num primeiro plano, pela Lei 11.428/06 (e Decreto 6.660/08) e, num segundo, plano, naquilo que não lhe contrariar, pelo Código Florestal – a própria Lei da Mata Atlântica o diz, em seu art. 1º:

“A conservação, a proteção, a regeneração e a utilização do Bioma Mata Atlântica, patrimônio nacional, observarão o que estabelece esta Lei, bem como a legislação ambiental vigente, em especial a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965.” [antigo Código Florestal].

Apenas para se compreender melhor como se dá a convivência harmônica desses dois diplomas, a partir de uma situação ilustrativa: o Código Florestal (lei geral) admite a exploração da vegetação nativa da Reserva Legal, mediante plano de manejo. Mas essa exploração não será admitida caso a Reserva Legal seja composta por vegetação primária de Mata Atlântica pois a Lei 11.428/06 (lei especial) não permite esse tipo de atividade em vegetação primária. Não se trata de negar a aplicação do Código Florestal à Mata Atlântica mas de se aplicar apenas as disposições do Código Florestal que não tornem letra morta as disposições da Lei 11.428/06.

Dessa forma, a lei geral será aplicável quando não conflitar com a lei especial. É por esta razão que as normas do Código Florestal que criam e disciplinam as Áreas de Preservação Permanente se aplicam ao Bioma Mata Atlântica. Mesmo que a Lei 11.428/06 não disponha sobre a criação e as restrições de uso das APPs, esse instituto não conflita com a Lei da Mata Atlântica – pelo contrário, apenas agrega um nível maior de proteção – sendo, então, perfeitamente extensível ao bioma (o mesmo entendimento vale para a Reserva Legal).

Como o regime jurídico das APPs está todo exposto no Código Florestal, correto dizer que é esta lei que dita as regras de proteção e utilização da vegetação localizada nessas áreas. Mas nem por isso se pode concluir, apressadamente, que isso vale também para as regras sobre o uso consolidado de APPs.

Não se pode perder de vista que as normas aplicáveis às APPs fazem incidir uma “segunda camada” de proteção sobre a Mata Atlântica. A “primeira camada” de proteção é a própria Lei da Mata Atlântica. Vale dizer, exemplificando: em uma mata ciliar da Mata Atlântica, temos primeiramente as normas de proteção da Lei 11.428/06 e, adicionalmente, as normas de proteção das APPs do Código Florestal. Dessa forma, se o Código Florestal todo fosse revogado, a segunda camada de proteção deixaria de existir, logo não haveria mais APPs na Mata Atlântica (e em nenhum outro bioma). Mas isso não afetaria a primeira camada de proteção ditada pela Lei 11.428/06 e tais áreas continuariam sujeitas às regras restritivas de corte, supressão e exploração.

À luz desse raciocínio, ainda que se aplique às APPs da Mata Atlântica o regime de uso consolidado de APP, estabelecido pelo Código Florestal, isso não significará, de forma automática e peremptória, que as atividades consolidadas outrora ilícitas terão permissão para permanecer na área, agora de forma lícita, e que os proprietários ficarão livres da obrigação de restaurar a vegetação. Isso porque tais áreas, em grande parte, foram ocupadas e desmatadas no passado não só ao arrepio do Código Florestal mas também ao arrepio da legislação protetora da Mata Atlântica (Decretos 99.547/1990 e 750/1993 e Lei 11.428/2006). Se o Código Florestal os anistiou, a Lei da Mata Atlântica não fez o mesmo, e, com base, nela, continuará sendo exigível a recuperação florestal caso a área tenha sido desmata e ocupada em desacordo com os Decretos 99.547/1990 e 750/1993 e Lei 11.428/2006. Em outras palavras: o proprietário poderá ser forçado a cessar a atividade, ainda que consolidada, e restaurar a vegetação, não com base na Lei 12.651/12 (salvo nos pequenos de APP que esta lei determina sejam recuperados) mas com base na legislação de proteção da Mata Atlântica.

Há quem defenda que se há uso consolidado, é porque não há mais Mata Atlântica no local, e se não há mais Mata Atlântica no local, não há que se falar na aplicação da Lei 11.428/2006 e, consequentemente, da obrigação de restaurar a vegetação, já que tal lei somente incide sobre os remanescentes florestais. Não há respaldo jurídico para a afirmação.

O art. 5º da Lei 11.428/2006 dispõe que “a vegetação primária ou a vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica não perderão esta classificação nos casos de incêndio, desmatamento ou qualquer outro tipo de intervenção não autorizada ou não licenciada.” – previsão semelhante já figurava no Decreto 750/1993 (art. 8º).

Encerra, portanto, que o desmatamento ilegal da Mata Atlântica não retira o status de Mata Atlântica da área desmatada, o que redunda na obrigação do proprietário de recuperá-la – e não poderia ser diferente pois se a intervenção ilícita afastasse as leis de proteção do bioma, o infrator seria premiado ao invés de ser punido.

Embora a legislação não diga a partir de quando deve ser aplicada a regra de que “a supressão ilegal da vegetação de Mata Atlântica não muda o status da área”, por óbvio que não se pode aplicá-la unicamente para as supressões realizadas a partir de 2006, pois isso significaria que a Lei 11.428/06 “apagou os efeitos” de todo o regime protetivo que lhe antecedeu – o que, a toda evidência, não foi o que ela fez.

Naturalmente que não se pretende retomar a extensão da Mata Atlântica da época do descobrimento ou mesmo de décadas atrás, mesmo porque a Lei 11.428/2006 dispõe que o regime protetivo incide sobre os “remanescentes” do bioma (art. 2º, parágrafo único), respeitando-se as ocupações históricas. Mas é preciso se entender que há um marco legislativo de proteção do bioma a partir do qual as supressões ilegais de vegetação não teriam força para retirar o status de Mata Atlântica da área, que é o decreto 99.547/90 ou, na pior das hipóteses, o decreto 750/1993 (que trouxe a definição do Bioma Mata Atlântica, valendo-se do Mapa de Vegetação do Brasil, IBGE-1988, além de uma disposição clara dizendo que área de Mata Atlântica que sofresse intervenção ilegal não deixaria de ser Mata Atlântica) – vale lembrar que apesar da resistência de alguns setores ao decreto 99.547/1990 e a decreto 750/93, eles nunca chegaram a ser declarados inconstitucionais3. Pelo contrário, foram aplicados por diversos órgãos ambientais e pelo judiciário durante toda a sua vigência. Portanto, os remanescentes de Mata Atlântica que fazem jus ao regime de proteção legal são aqueles que existiam em 1990 (ou ao menos em 1993) e não os que existiam em 2006.

O próprio acórdão do STJ4 invocado no PARECER nº 00115/2019/DECOR/CGU/AGU para fundamentar o entendimento de que nas áreas consolidadas não há mais Mata Atlântica sujeita à proteção da Lei 11.428/2006, confirma a nossa ponderação. Isso porque a decisão do STJ pontifica que a exploração econômica iniciada em 1979 pelos autores da ação não seria prejudicada pelo Decreto 750/1993 pois suas normas só incidiriam sobre os remanescentes da Mata Atlântica, ou seja, sobre as florestas que estivessem em pé em 1993. Via de consequência, o STJ manifestou que a partir de 1993, a floresta em pé não poderia mais ser desmatada (salvo mediante autorização do órgão competente). E acaso fosse, o status de Mata Atlântica da área desmatada ilegalmente não seria perdido, ante o disposto no art. 8º do decreto 750/93. Por esta razão é que se pode falar, sim, em usos consolidados (ilegais) em área de Mata Atlântica.

Isso nos leva a concluir que aquele que desmatou APP de Mata Atlântica a partir de 1990 (ou 1993), em desacordo com as normas de proteção da Mata Atlântica vigentes à época da intervenção, precisará restaurar a Mata Atlântica do local, ainda que a área seja considerada “área consolidada” para os fins do Código Florestal5. O fato do Código Florestal não a considerar mais Área de Preservação Permanente não pode resvalar na errônea conclusão de que ela não é mais Mata Atlântica.

Por conta disso, somos da opinião que o despacho 4.410/20, do ministro do Meio Ambiente, não tem o condão de exonerar os proprietários que desmataram e ocuparam áreas de Mata Atlântica em desacordo com o decreto 99.547/90, decreto 750/93 e lei 11.428/06, mesmo que as áreas em apreço estejam em APPs consolidadas. Afinal, o Código Florestal limitou-se a regularizar o uso consolidado de APP, nada dispondo sobre o uso consolidado de Mata Atlântica.

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1 Disponível em https://www.sosma.org.br/wp-content/uploads/2019/05/Atlas-mata-atlantica_17-18.pdf. Acesso em 27.04.2020 e Projeto MapBiomas – Coleção 41 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso de Solo do Brasil, acesso em 27.2020 de 2020 por meio do link: https://mapbiomas.org

2 A ADIn 4.902 foi julgada em conjunto com as ADI 4.901, 4.903 e 4.937 e ADC 42, em 28.02.2018, tendo como relator o Min. Luiz Fux. Disponível em  http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750504579. Acesso em 27.04.2020

3 A Confederação Nacional da Indústria ajuizou a ADIn 487 para ver declarada a inconstitucionalidade do Decreto 99.547/1990. A ação não foi julgada por perda de objeto, dada a publicação do Decreto 750/1993. Entretanto, o STF indeferiu a cautelar requerida pelo autor da ação (ADI 487 MC, Rel. Min. Octavio Gallotti, j. 09.05.1991), sob o argumento de que seria prudente deixar o decreto em vigor até o julgamento final para afastar risco de devastação das florestas.

4 “Ementa […] 11. Cabe observar que, no caso dos autos, o Decreto 750/93 não diminuiu a área então cultivada pelos recorridos, até porque não há Mata Atlântica na lavoura. Apenas impediu nova supressão da cobertura florística, especificamente a vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração. O efeito possível do Decreto é restringir a ampliação do aproveitamento econômico do imóvel, mas não reduzir a exploração já existente” (STJ – REsp nº 1.104.517 – SC, 2ª. T., Rel. Min. Castro Meira, Redator Min. Hermann Benjamin, j. 27.08.2013).

5 GAIO, Alexandre. Lei da Mata Atlântica Comentada. 2ª ed. São Paulo: Almedina, 2018, p. 129 e ss.

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*Erika Bechara é doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Professora de Direito Ambiental da PUC/SP, sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados e assessora jurídica da Fundação SOS Mata Atlântica. 

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