Em breve, será um desafio manter na região populações saudáveis e prover serviços ecossistêmicos básicos como o abastecimento da água
7 de dezembro de 2021Confira o artigo publicado originalmente no Estadão, em 26 de novembro de 2021
* Gustavo Veronesi – Geógrafo e coordenador técnico do projeto Observando os Rios da Fundação SOS Mata Atlântica
* Luís Fernando Guedes Pinto – Engenheiro agrônomo e diretor de Conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica
O Brasil enfrentou este ano a pior crise hídrica das últimas décadas nas regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste, resultado direto da ação humana. E, sentimos muito em dizer, outras crises ainda maiores virão pela frente.
Não mudamos nossos comportamentos e insistimos em buscar soluções por meio de muita engenharia e de pouca atenção à natureza. Em nossa relação com o meio ambiente, mantivemos práticas do período colonial. Basta olharmos para os grandes rios do Brasil, que por séculos vêm sendo utilizados prioritariamente para diluição de efluentes, irrigação e geração de energia. A precária condição ambiental e os altos índices de poluição medidos na qualidade da água em rios da Mata Atlântica refletem a gravidade do problema e o tamanho do desafio que temos pela frente para buscar segurança hídrica e sustentabilidade às atividades econômicas, além da manutenção dos ecossistemas.
Essa escassez acirra as disputas por uso da água e impacta diretamente o setor hidrelétrico, responsável por mais de 70% da matriz energética brasileira. Por consequência, as termelétricas já vêm sendo acionadas em diversos pontos do país. Embora pareçam capazes de nos ajudar a lidar com o problema de hoje, elas aumentam, e muito, o problema de amanhã, pois a queima de gás natural e óleo (recursos não renováveis, é bom lembrar) lança uma imensa quantidade de poluentes na atmosfera. E, como se não bastasse, as termelétricas também consomem muita água. Soluções de curto prazo costumam ser um desastre para o futuro.
Mas a água que falta não é apenas a que deixa de sair das torneiras ou de gerar a energia que abastece nossos eletrodomésticos e atende às atividades econômicas. O consumo de água está em virtualmente toda a produção humana, agrícola ou industrial. É o uso invisível: segundo a The Water Footprint Network, um quilo de carne consome até 15 mil litros de água. Para uma calça jeans ser fabricada, utiliza-se até 2 mil litros. Um carro? Mais de 140 mil. E falta água também para usos múltiplos, como turismo, lazer, mineração, pesca, navegação, limpeza pública e combate a incêndios.
A água envolve inúmeras necessidades e interesses. Por isso, para sua gestão é preciso fortalecer a governança por meio dos instrumentos previstos na Lei das Águas do Brasil. Infelizmente, a chamada MP da Crise Hídrica (Medida Provisória 1055/21), editada pelo governo federal, seguiu na contramão, enfraquecendo a construção de soluções coletivas. Ela desrespeita a Política Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e concentra as decisões sobre uso da água no Ministérios de Minas e Energia (MME), retirando atribuições da Agência Nacional de Água e Saneamento Básico (ANA) e do IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) sobre a regulação da água.
Diante desse apagão na governança da água e do desmonte da legislação ambiental, temos que apostar na recuperação e na conservação da natureza para o enfrentamento da crise hídrica. O alerta da comunidade científica é de que a melhor ferramenta para nos ajudar a enfrentar a emergência climática e as crises hídricas e de saúde pública é a recuperação e a conservação da natureza. Ou seja, a resposta está na própria natureza. Em outras palavras, para termos uma chance de futuro neste planeta, precisamos fazer com que a Terra fique um pouco mais parecida com o que era no passado. Precisamos, acima de tudo, replantar florestas nativas.
Começamos falando de água, agora estamos falando de florestas. O que árvores têm a ver com rios? Tudo. A falta de cobertura florestal em áreas de nascentes e beira de rios – as chamadas matas ciliares – compromete a qualidade e a quantidade da água. E um levantamento feito a partir dos dados do Atlas da Mata Atlântica, estudo realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), mostra que o desmatamento da Mata Atlântica vem atingindo também as principais bacias hidrográficas que compõem o bioma. Das 47 localizadas em Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRHs), 35 tiveram desflorestamentos em suas áreas entre 2019 e 2020.
A região da Mata Atlântica concentra os maiores centros urbanos e industriais do país, além de ser onde é produzida grande parte dos nossos alimentos. Por outro lado, apenas cerca de 12% dos seus maiores fragmentos permanecem de pé – enquanto, segundo a revista Science, o limite mínimo para a conservação de sua biodiversidade é de 30%. Do jeito que está, o bioma passa por um processo crítico de degradação. Muito em breve será um desafio manter na região populações saudáveis e prover serviços ecossistêmicos básicos como o abastecimento da – sempre ela – água. Isso quer dizer que restaurar a Mata Atlântica pode garantir o nosso futuro. Os principais caminhos viáveis no longo prazo são as soluções baseadas na natureza.
Conservar as florestas não é simplesmente preservar a flora e a fauna, é também a nossa única possibilidade de levar adiante tudo o que a humanidade tem e faz de melhor.