Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico
15 de abril de 2021 - Por Malu RibeiroPor Malu Ribeiro e Mario Mantovani*
O Brasil é um país essencialmente urbano, mais de 85% da população do país vive em áreas urbanas. Segundo dados do projeto MapBiomas, que permite acompanhar mudanças no uso da terra desde 1985, a área ocupada por infraestrutura urbana triplicou nessas últimas três décadas, saltando de pouco mais de 1 milhão de hectares para quase 3,5 milhões atualmente.
A distribuição das maiores cidades e da população urbana é bastante desigual no Brasil. Warren Dean, no seu livro A Ferro e Fogo, conta como a urbanização acelerada e o processo de industrialização a partir do século 19 foram importantes para a supressão das áreas naturais de Mata Atlântica. Hoje, esse bioma concentra mais de 70% da população do país, sendo que 90% são moradores de zonas urbanas. Já a região costeira possui uma densidade demográfica até cinco vezes superior à média nacional, praticamente um quarto da população brasileira em apenas 4% do território.
Esses poucos números já nos mostram onde estão concentrados grandes problemas habitacionais e os espaços mais conflituosos em termos de especulação imobiliária. Após séculos de crescimento urbano e diversos ciclos de supressão de Mata Atlântica, a proximidade de áreas urbanas é uma das principais variáveis relacionadas ao impacto humano que pode ser mensurado nos pouco mais de 12% de remanescentes florestais que ainda nos restam no bioma.
Portanto, o crescimento das cidades ainda segue como um tema importante para a Mata Atlântica. Em anos como 2021, primeiro ano das novas gestões municipais, é comum observarmos a maior pressão por empreendimentos imobiliários, especialmente na zona costeira do bioma mais populoso do país.
Alguns casos emblemáticos recentes podem ser citados. Por exemplo, a alteração do código de obras do município de Ilha Comprida, litoral sul do estado de São Paulo, para permitir torres de até sete andares. A alteração na lei municipal foi feita sem o devido processo participativo e desconsiderando que todo o município se encontra em uma Área de Proteção Ambiental. A área urbana da Ilha Comprida cresceu sobre um frágil cordão arenoso que protege todo o sistema estuarino lagunar da região, reconhecido mundialmente pela sua importância ecológica. Movimento local tenta reverter a decisão e garantir a participação da sociedade.
Já no município de Bombinhas, em Santa Catarina, empreendimento pretende construir torres residenciais na Praia do Ribeiro, uma pequena área ainda bem conservada de Mata Atlântica situada entre outras duas praias já totalmente urbanizadas. Igualmente, um movimento que une diversas organizações locais questiona o processo de licenciamento e tenta barrar a construção.
Outro projeto controverso é o Polo Turístico do Cabo Branco, na capital Paraibana, João Pessoa. O município foi pioneiro ao publicar o primeiro Plano Municipal de Mata Atlântica do país, porém, a área ameaçada pelo empreendimento encontra-se justamente em uma das áreas prioritárias traçadas pelo Plano Municipal, é vizinha de três Unidades de Conservação (Parque Estadual do Jacarapé, Parque Estadual de Aratu e Parque Estadual das Trilhas dos Cinco Rios) e de Áreas de Proteção Permanente em mata ciliar e borda de falésia costeira. A sociedade civil local já se articula para denunciar que qualquer supressão de Mata Atlântica na região é ilegal.
Outra frente de ameaça é a alteração em instrumentos de planejamento, como os Planos Diretores. De acordo com o Estatuto das Cidades, o Plano Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, que deve ser periodicamente revisto para promover o diálogo e harmonizar objetivos sociais, econômicos e ambientais. Entretanto, essa conciliação muitas vezes é conflituosa.
No município de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, a ameaça da verticalização é recorrente. São Sebastião situa-se na região biogeográfica da Serra do Mar, com extensas áreas de Mata Atlântica e restrições para expansão urbana, não apenas pela legislação ambiental, mas também por limitações físicas devido à pequena extensão das planícies costeiras e proximidade com as escarpas cristalinas da serra. Em 2021, a revisão do Plano Diretor de São Sebastião volta a ser contestado por organizações locais.
E não se pode desconsiderar o impacto da pandemia de COVID-19, muito agravada desde o início desse ano, nas possibilidades de participação da sociedade civil. Em São Paulo, maior cidade do país, que ainda conta com importantes remanescentes de Mata Atlântica, movimento da sociedade civil endereçou carta ao prefeito clamando pelo adiamento da revisão do Plano Diretor, uma vez que a participação por meio de audiências virtuais compromete o debate com os mais diversos setores da sociedade.
Muitos outros casos poderiam ser citados, mas a mensagem é que a expansão urbana ainda é um vetor de impacto fortíssimo sobre o que nos resta de Mata Atlântica. Esses impactos podem ser causados no nível do licenciamento de empreendimentos individuais ou no nível da legislação municipal mais geral. Em todos os casos, é de suma importância que a sociedade civil e as organizações locais permaneçam alertas e, principalmente, sejam ouvidas dentro do devido processo democrático. Os poderes municipais, executivo e legislativo, devem estar atentos a isso, bem como o Ministério Público, quando necessário.
Por outro lado, é também nos municípios onde estão grandes oportunidades de conservação e restauração da Mata Atlântica. A elaboração e implementação dos Planos Municipais de Mata Atlântica, a criação de Áreas Protegidas municipais, o fortalecimento das ações de saneamento ambiental, esses e outros temas são importantes para a agenda de todos os 3.429 municípios do bioma e a participação da sociedade civil é fundamental para direcionar esse processo. Em tempos de boiadas no nível federal, a atenção aos municípios precisa ser redobrada, não apenas para conter ameaças e retrocessos, mas para apontar caminhos de desenvolvimento justos, saudáveis e sustentáveis.
*Malu Ribeiro é jornalista e Mario Mantovani é geógrafo; ambos atuam na diretoria de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.