Por Jean Paul Metzger* originalmente publicado na Folha de S.Paulo.
Nesta semana as ações de inconstitucionalidade da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, mais conhecida como novo Código Florestal, voltarão a serem debatidas no Superior Tribunal Federal (STF). Esta será mais uma oportunidade para os ministros do STF refletirem sobre essa lei à luz de todo o conhecimento científico que foi gerado nos últimos anos. Espera-se que, mesmo havendo pressões políticas e econômicas, os ministros tomem decisões que beneficiem a sociedade como um todo, e que essas decisões sejam pautadas em evidências, principalmente naquelas que têm comprovação científica.
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa é a uma das mais importantes leis ambientais do Brasil, pois é ela que rege sobre a conservação de vegetação nativa em propriedades privadas, o que representa cerca de 280 milhões de hectares, ou seja metade de toda nossa vegetação nativa. Uma lei fraca significa um sério risco ambiental para o país.
A comunidade científica já se pronunciou, por diversas vezes, através de publicações veiculadas em revistas científicas do Brasil e do exterior, incluindo artigos na prestigiosa revista Science, e através de compilações de evidência científicas que foram organizadas pelas maiores e mais importantes sociedades científicas do Brasil, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação e a Associação Brasileira de Limnologia. Todos esses documentos mostram que algumas das mudanças aprovadas na revisão do Código Florestal em 2012 são perigosas para a segurança hídrica, climática e alimentar do Brasil, o que acabou originando as ações de inconstitucionalidade agora em discussão no STF.
Já há amplas evidências científicas que mostram que a vegetação nativa é importante para a regulação da vazão dos rios, para a melhoria da qualidade da água, para a captura do CO2 do ar, além de ser fonte de organismos que prestam valiosos serviços de controle de praga e polinização em diversos cultivos, propiciando assim condições para o aumento da produtividade agrícola. A manutenção de paisagens com coberturas acima de 30% de florestas propicia também a manutenção da biodiversidade e reduz a propagação de algumas zoonoses, como a hantavirose, o que pode ser particularmente relevante diante do risco de propagação de outras doenças graves, como a febre amarela. A restauração da vegetação nativa pode propulsionar uma nova cadeia econômica, desde a produção de mudas, o planejamento espacial do plantio, até o acompanhamento e a manutenção das áreas restauradas. Claramente a preservação e restauração das florestas e demais formas de vegetação nativa podem levar a uma situação onde todos saem ganhando, pois essas ações beneficiam a biodiversidade, a provisão de água e energia, a regulação do clima, o controle na propagação de certas doenças e um aumento na produtividade agrícola. A sociedade como um todo pode ser beneficiada.
Desta forma, ainda é hora de corrigir os rumos desta lei, mantendo os acertos e as boas inovações, como o Cadastro Ambiental Rural e os incentivos econômicos para a manutenção da vegetação nativa, mas corrigindo algumas graves distorções. Dentre essas distorções estão: (i) as mudanças no referencial das Áreas de Preservação Permanente (APP) ripárias, que passa a ser agora o leito regular ao invés do leito maior do rio, o que leva a uma redução na proteção de todos os rios do país, deixando amplas áreas de várzea desprotegidas; (ii) a restauração apenas parcial das beiras de rios, através da regra conhecida como “escadinha”, que fragiliza a proteção dos rios, aumentando as taxas de assoreamento e de entrada de contaminantes, como pesticidas, reduzindo assim a qualidade das águas, o potencial pesqueiro e a vida média dos reservatórios de abastecimento; (iii) o cômputo de APP em Reservas Legais (RL) e a possibilidade de usar 50% de espécies exóticas em RL, o que reduz substancialmente os requerimentos de cobertura vegetal nativa, favorecendo principalmente as grandes propriedades, mas prejudicando a sociedade como um todo através dos efeitos perversos destas medidas sobre a biodiversidade, o clima e a água; (iv) a compensação de RL no âmbito de todo o bioma, o que deve reduzir substancialmente a cobertura vegetal em áreas mais degradadas, onde a restauração seria mais benéfica, transferindo a conservação para áreas onde ela é menos necessária (onde já há excedente de vegetação, em parte já protegida, como no caso da Unidades de Conservação). Estes são apenas quatro exemplos de mudanças prejudiciais na lei, mas no total são 21 dispositivos que geraram as ações de inconstitucionalidade que estão atualmente em discussão no STF.
As evidências cientificas sobre a importância estratégica da vegetação nativa já existem e foram amplamente divulgadas nos últimos anos. Esperamos que os ministros do STF consigam utilizá-las de forma imparcial, para uma tomada de decisão consciente, que considere todos os setores da sociedade brasileira envolvidas nessa discussão. Ainda é tempo do corrigir as graves distorções da lei, sem comprometer a segurança jurídica e as atividades econômicas dos que vivem ou dependem do campo.
* Jean Paul Metzger é doutor em ecologia de paisagens pela Universidade Paul Sabatier de Toulouse (França), professor do departamento de ecologia da USP e membro do Conselho Administrativo da Fundação SOS Mata Atlântica.