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Entrevista do mês: Gustavo Martinelli

O biólogo e botânico reflete sobre a sua trajetória, a experiência com o paisagista Burle Marx no início de sua carreira, as inúmeras expedições a experiência com povos originários

20 de janeiro de 2022

Por Mônica C. Ribeiro

Ouvir Gustavo Martinelli contar sobre as expedições botânicas realizadas por ele em todos os biomas brasileiros, em 48 anos de atuação no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, traz uma sede de explorar a diversidade biológica da flora brasileira e nos faz pensar o quanto o país ainda precisa conhecer.

A sede, no caso de Gustavo, ainda não terminou. Ao contrário. Recentemente aposentado em 2020, ele continua a realizar expedições por conta própria. Só em 2021 foram duas, e ele já prepara mais algumas para 2022, dentro de um projeto pessoal chamado Inventários em Áreas Prioritárias para Conservação. Ele identifica regiões prestes a desaparecer, onde ocorrem pressões antrópicas, e documenta a flora existente. As amostras são doadas ao Jardim Botânico.

É um registro que acho fundamental para o país, para que não apenas se reconheça o que existe, mas que se reconheça no futuro o que foi perdido sabendo o que realmente existia ali. E também estão nesse processo áreas que são gaps de informação, que nunca foram inventariadas e que ninguém sabe o que tem ali.

Doutor pela Universidade St. Andrews, foi pesquisador do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e coordenador do Centro Nacional de Conservação da Flora na mesma instituição. Na década de 1990, Gustavo coordenou o projeto Bromélias da Mata Atlântica, que mapeou todos os remanescentes do bioma e levou dois anos coletando amostras para duas finalidades: levantamento e documentação de espécies para o herbário e para uma coleção viva, que facilitaria a reprodução e reintrodução de espécies em lugares em que o bioma fosse destruído.

Conselheiro da Fundação SOS Mata Atlântica há 20 anos, participou da realização do Atlas da Mata Atlântica e é um dos autores do Livro Vermelho da Flora do Brasil, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti na categoria ciências naturais, em 2014. Fruto de uma demanda do governo federal para atualização da lista de espécies de flora ameaçadas, o levantamento trazia na época 2.113 espécies, ante à lista anterior, que documentava pouco mais de 400. Hoje, segundo ele, essa lista, se atualizada, deve chegar a mais de cinco mil.

Por achar que nesse país, com essa riqueza de flora que a gente tem e a rapidez com que a destruição avança, é um pouco um luxo se dedicar a apenas uma família, preferi trabalhar com a flora de um modo geral, particularmente com espécies ameaçadas.

Nessa entrevista concedida à SOS Mata Atlântica, o biólogo e botânico reflete sobre a sua trajetória, a experiência com o paisagista Burle Marx no início de sua carreira, as inúmeras expedições realizadas ao longo de quase cinco décadas de trabalho no Jardim Botânico e a experiência com povos originários nos processos de inventariamento da flora, incluindo a publicação do livro Una Isi Kayawa – Livro da cura do povo Huni Kuin, que registra as plantas utilizadas pelos Huni Kuin de forma medicinal.

O livro foi elaborado a pedido dos indígenas, que sentiam perder sua cultura com o envelhecimento dos pajés e o pouco interesse das novas gerações pelos conhecimentos da floresta.

Foi um enorme aprendizado. E no final das contas, minha conclusão como cientista é que, de tudo que eles têm de memória de plantas usadas na medicina, boa parte não são mais as plantas da floresta. Isso mostra que eles já perderam uma parte do conhecimento das plantas da floresta primária e passaram a usar espécies já domesticadas, que são mais plantas dos quintais, lavouras e capoeiras.

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

Como você descobriu que queria ser botânico? Quando veio o ‘estalo’ que o levou a seguir por esse caminho?

Sempre acho que às vezes o universo conspira para as coisas acontecerem. Eu sou um carioca, urbano, nascido e criado no Leblon. Mas meu pai sempre teve um sitiozinho em Araras [Petrópolis, RJ], onde estou agora – embora não exatamente na mesma casa -, em plena Mata Atlântica. Estava na fase de estudante, de decidir o que ia fazer no vestibular, e meu pai tinha um amigo que era do mundo do Jardim Botânico, da academia, uma pessoa muito especial. E ele comentou com esse amigo que buscava um lugar onde eu pudesse fazer estágio, e que eu gostava de natureza. E veio o estágio no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em janeiro de 1973. Ali eu descobri um mundo com o qual eu me identifiquei. O mundo das plantas. O universo conspirou para que eu me encantasse, e assim passei 48 anos em uma instituição bastante singular, que existe desde o Império. O Jardim Botânico tem 213 anos de existência. É uma instituição que circula em vários mundos: o mundo da conservação, porque esse é o papel fundamental dos jardins botânicos no mundo, a conservação das plantas; o mundo científico, porque é também uma instituição de pesquisa e o mundo da educação, pela capacidade de disseminar informações aos milhares de visitantes. É como se a gente vivesse em duas carreiras, a científica, de ciência e tecnologia, e a da conservação, no seu sentido mais amplo. E tudo começou graças aos grandes mestres que tive no Jardim Botânico.

 

Você viajou com expedições botânicas por todos os biomas no país nesses 48 anos de atuação no Jardim Botânico. Quantas foram nesse tempo todo?

Olha, eu não sei te contar. Porque foram muitas. Tive uma fase inicial em que eu acompanhava meus mestres, e isso foi um grande aprendizado. Porque é muito diferente o que você aprende nos livros e o que aprende andando ao lado de um professor, na floresta, treinando seu olhar para enxergar as diferenças e entender tudo aquilo. Mas eu realmente não tenho essa conta. Recentemente foi feita uma homenagem a mim, no ano passado, no Congresso Nacional de Botânica. Que me pegou de surpresa e me deixou bem emocionado. O Jardim Botânico tem uma das maiores coleções científicas de plantas do Brasil, que é uma referência nacional. E o seu acervo completou 130 anos em 2020. E a minha surpresa, porque eu realmente nunca me preocupei em sistematizar esses dados, é que na história desse herbário fui considerado o maior coletor de amostras de todo o país.

Essas expedições tiveram várias fases. Em uma delas, trabalhei em um projeto grande, fruto de um acordo de cooperação internacional entre o National Science Foundation dos EUA e o CNPQ, que era o projeto Flora da Amazônia. Lá nos anos 1980 o país estava naquele processo de abertura de estradas na Amazônia, aquela coisa de a Amazônia é nossa, uma febre de loucura política. No mundo científico, a gente conhecia pouco da Amazônia. Ela não era explorada, apesar de já existirem por lá instituições antigas e grandes trabalhando na região. A dimensão daquele bioma ainda trazia muitas áreas sem explorar. E eu participei de boas expedições, algumas longas, de 3 a 4 meses inventariando espécies nunca antes identificadas.

Dos anos 1990 em diante, comecei a visitar outros lugares em outros biomas e a selecionar quais daquelas áreas que já tinha visitado anteriormente seria interessante complementar com informações. E vou fazer um parêntesis aqui. Temos um desenvolvimento científico e tecnológico muito grande, uma grande parte do mundo da botânica hoje já trabalha no nível molecular, produzindo informações preciosas sobre os processos evolutivos e ecológicos. Mas o Brasil é um país que ainda precisa do elementar, da chamada pesquisa básica, que é saber o que é que existe de fato, registrar as amostras e as informações sobre onde ocorrem. Estamos falando de biomas que são do tamanho de países na Europa. Temos ainda essa quase dicotomia, avanços em algumas áreas e pouco avanço naquela que é fundamental, a pesquisa preliminar, o levantamento e a identificação do que existe e do que está se perdendo.

 

“(…) é que na história desse herbário [do Jardim Botânico do Rio de Janeiro] fui considerado o maior coletor de amostras de todo o país.”

 

Como foi a seleção dessas áreas que você voltou a visitar?

Comecei a visitar áreas que eu já tinha ido há um tempo e percebi que algumas delas simplesmente haviam desaparecido. Lugares que tinha visitado há cinco, seis anos fazendo levantamentos, pesquisando uma dada região, uma área amostral importante, ecossistemas quase endêmicos de certas regiões. Por exemplo, na Mata Atlântica me lembro muito de áreas que são conhecidas como matas do sal. São florestas em cima de uma areia branca, um tipo muito peculiar. As espécies que ocorrem ali são muito específicas, endêmicas daquela região. Era um lugar onde encontrei várias espécies novas, uma certa região serrana do Espírito Santo. Cinco, seis anos depois eu volto nessas regiões e elas não existem mais. Só existem pequenas áreas na forma de fragmentos isolados deste tipo de floresta. Muitas das áreas de outros ecossistemas hoje são pastos, ou um condomínio gigantesco, uma plantação, ou mesmo áreas desmatadas e abandonadas, e isso chamou muito a minha atenção.

E então eu mudei um pouco, saí do padrão estritamente acadêmico, cujas métricas são baseadas em quantos artigos você publica nas revistas científicas. Como se mede a atuação de um pesquisador da área acadêmica? Vendo quantos artigos ele publicou, qual é o seu fator de impacto, quantos alunos formou em mestrado e doutorado, enfim. Em um dado momento, pensei: se quero salvar alguma coisa, tenho que ultrapassar as fronteiras desse mundo, porque se eu escrever um artigo, que vai ser publicado nas grandes revistas importantes e famosas, qual o tempo para que um artigo impacte na prática em proteger um lugar, uma região, as espécies? E isso mudou meu rumo. Eu passei a me dedicar muito mais a ações práticas e emergenciais, a me preocupar muito mais com fazer ações de pesquisa básica, de registrar e documentar as espécies que caracterizem a importância de ações concretas voltadas para a conservação. 

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

Como essa mudança se refletiu na sua trajetória no Jardim Botânico?

Criamos lá no Jardim Botânico o Centro Nacional de Conservação da Flora, que originou o Livro Vermelho da Flora do Brasil. Que, para minha surpresa, ganhou o primeiro lugar no Prêmio Jabuti. Eu não podia acreditar que um livro técnico fosse reconhecido nacionalmente com esse prêmio. Essas minhas expedições, esse meu querer conhecer as plantas do meu país, me tiraram um pouco dessa métrica acadêmica, científica. Eu não critico, acho ela importante, porque você está gerando conhecimento. Mas com pouca aplicação para a conservação de fato na sociedade.

Ajudei muito na criação de diversas unidades de conservação. Pulei muito o muro da minha instituição, fiz articulações internacionais. Trabalhei muitos anos com montanhas, participei de um grupo organizado pela Convenção da Diversidade Biológica da ONU, em que se discutiam os ecossistemas de montanha no mundo. As montanhas têm importância para a água, para o clima, para as cidades. Temos países que são todos em cima de montanhas, como nos Alpes. E logo percebi que o Brasil nem reconhece corretamente montanhas. Se a gente olhar o mapa oficial brasileiro de vegetação, o mapa do IBGE, as vegetações das montanhas são consideradas como refúgios ecológicos e muito pouco caracterizadas. Sem nenhuma apropriação das importâncias. E eu mandava relatórios enormes mostrando a importância da criação de políticas públicas para lidar com os ecossistemas de montanhas – infelizmente o país continua sem uma política voltada a montanhas. E fui me dedicando a isso.

As expedições trouxeram para mim uma experiência inigualável. Mesmo aposentado, continuo fazendo expedições científicas. Tenho um projeto chamado Inventários em Áreas Prioritárias para Conservação, em que eu identifico regiões que estão prestes a desaparecer, onde haja pressões efetivas ou iminentes, que podem acabar com um ecossistema ou uma montanha inteira. Vou a esses lugares para, pelo menos, documentar o que existe hoje e pode amanhã não existir mais. E doo essas amostras para o Jardim Botânico. É um registro que acho fundamental para o país, para que não apenas se reconheça o que existe, mas para que se reconheça também o que foi perdido, sabendo o que realmente existia ali. E também estão nesse processo áreas que são gaps de informação, que nunca foram inventariadas e que ninguém sabe o que tem ali. Fiz duas expedições em 2021, e em 2022 já vou para uma terceira em alguns lugares interessantes, serras que já tenho sinalização que vão sofrer grandes impactos por projetos grandes de energia, que vão destruir aquelas regiões.

Um grande marco na minha carreira foi exatamente sair da pesquisa pela pesquisa e trabalhar na conservação. Enquanto falo isso, estou pensando no meu papel no Conselho da SOS Mata Atlântica, que integro há quase 20 anos.

 

Qual é o papel das organizações não governamentais que trabalham com conservação?

Essas ONGs muitas vezes atuam onde não existe uma política efetiva sendo aplicada. É muito raro ver uma boa política de estado e organizações sociais juntos. Não é que não exista esse tipo de interação, mas são poucos os casos. Geralmente, quando o estado não dá conta, as organizações vão e fazem o seu papel.

Essa rede de organizações tem um papel importantíssimo. Elas atuam localmente, algumas em políticas mais regionais, outras em mobilizações nacionais. A própria SOS Mata Atlântica vem, ao longo do tempo, deixando de ser regional, e hoje atua na escala de todo o bioma. A partir do Atlas da Mata Atlântica, que dá uma visão em escala nacional. Mas acho que falta um pouco de integração entre as ONGs na prática.

Talvez a SOS Mata Atlântica seja a maior organização dedicada a um bioma. Mas existem centenas, imagino eu, organizações pequenas, locais, situadas na Mata Atlântica, lutando na sua escala, seja micro, seja um pouco mais abrangente, para salvar coisas. Mas a integração de tudo isso, desses esforços, ainda acho que é muito pequena face ao processo, aos padrões de desenvolvimento e às políticas públicas inadequadas. Passaram-se 500 anos e continuamos perdendo Mata Atlântica. Se pegarmos o que resta do bioma, incluindo as unidades de conservação, eu diria que 1% a 2% de tudo que sobrou ainda tem características originais de fato.

É meio triste constatar tudo isso, porque o que fizemos com a Mata Atlântica desde o descobrimento fazemos também agora com o Cerrado, com a Amazônia. É triste constatar isso. E é por isso que eu tenho muito orgulho e gosto muito de trabalhar com a SOS Mata Atlântica. Porque é uma instituição que está na linha de frente, que briga por políticas públicas, que incentiva, que faz acontecer. E isso faz com que eu não me sinta impotente nesse quadro de destruição.

Temos um desafio gigante, que é esse bioma hoje reduzido a 14%, e esses 14% correm riscos enormes. Boa parte são unidades de conservação e áreas particulares. Aqui nesse vale aqui onde estou, em Araras, os grandes proprietários todos morreram, e os filhos agora querem vender tudo, porque cada lote aqui custa um milhão de reais. E aí acaba a água. Vendendo os terrenos, consegue-se ganhar um bom dinheiro. Mas não tem água.

 

A própria SOS Mata Atlântica vem, ao longo do tempo, deixando de ser regional, e hoje atua na escala de todo o bioma. A partir do Atlas da Mata Atlântica, que dá uma visão em escala nacional.

 

Como mobilizar essas pessoas?

Nós estamos vivendo situações concretas que mobilizam grandes discursos – as mudanças climáticas, o desmatamento, a perda de espécies da flora e da fauna. Mas a minha experiência mostra que se hoje eu quero conservar plantas e bichos, um caminho estratégico para chegar às pessoas é falar da água. Falar que todos têm que conservar por si só não funciona. Estamos ainda longe, como sociedade, de nos preocupar com a perda da biodiversidade. Mas quando a gente fala em água, é um serviço ecossistêmico estratégico hoje em dia. E eu acho que a SOS Mata Atlântica está no caminho certo nesse aspecto.

E também não adianta somente conservar esses 14% que sobraram. É preciso restaurar o que foi destruído. E o restaurar, que se faz ainda de forma incipiente para a escala do bioma Mata Atlântica, é um pouco diferente de reflorestar. Posso reflorestar com eucalipto, ou vegetação mista. Restaurar é um processo um pouco mais delicado, que depende da informação básica, que é: o que havia aqui antes? Temos uma lista, ótimo. Mas o que o mercado tem daquela lista para oferecer? Não tem a diversidade de espécies necessárias. O mercado é limitado para esse esforço gigantesco. Temos alguns modelos bons de restauração, o da SOS Mata Atlântica em Itu é um deles.

Para restaurar biodiversidade é preciso produzir mudas a partir dos próprios remanescentes que sobraram. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, fez uma coisa interessante com as unidades de conservação, com uma legislação que permite que, para fins de restauração, seja possível coletar sementes nas unidades de conservação. Porque o problema é esse, se só temos 14% de Mata Atlântica, onde se coletam sementes de espécies que representem a diversidade que existia? Onde estão ainda espécies da Mata Atlântica que são fornecedoras das sementes, que vão virar mudas, que vão virar árvores plantadas? Na visão mais geral, da escala necessária para recuperar o bioma, as ações ainda são incipientes e regionalizadas. O que acontece no Sudeste é diferente do que acontece na Mata Atlântica do Nordeste, do que acontece nesse bioma no sul.

 

O mercado oferece sempre as mesmas espécies, e muitas vezes mais exóticas do que nativas…

Tive uma oportunidade, que foi uma coisa que me abriu muito os horizontes. Lá para os anos 1975, quando eu ainda era estagiário, um dos meus mestres fazia um trabalho de identificação das plantas das coleções do Roberto Burle Marx. Era uma coleção grande, e ele me pediu para ajudar a identificar as espécies daquela grande coleção de plantas que o Burle Marx usava nos seus projetos paisagísticos. E tomei conhecimento de um novo olhar. Porque eu, como biólogo, olhava uma planta e conseguia entendê-la na visão do biólogo: determinar a família, o gênero, a espécie, onde ocorre, como são as pétalas, as flores, enfim. E o Burle Marx olhava para essas plantas com uma outra visão, de cores, texturas, formas, volumes, estrutura, beleza. E aquilo me encantou.

Passei a circular um pouco nesse meio, o Roberto tinha uma coisa muito interessante que era o convívio com cientistas, artistas, arquitetos, outros paisagistas, e comecei a participar daquilo. Alguns paisagistas me pediam ajuda para identificar algumas plantas que eles usavam, ou até para ajudar a fazer um jardim, e no final das contas, nesses 48 anos de atuação, eu passei quase 45 com uma atividade meio paralela ao mundo acadêmico. Estudei desenho para me aprimorar nesse olhar e mantive essa atividade paralela.

Depois de 48 anos no Jardim Botânico, em 2020 eu tomei a decisão de me aposentar. Eu levei cinco anos para tomar essa decisão, já podia ter me aposentado desde 2015. E então tenho trabalhado mais no que chamo de bio paisagismo, sempre observando o lado da diversidade biológica. Tenho tentado, nos meus projetos paisagísticos, integrar o ecossistema dos lugares que eu conheci tão bem andando por esse país todo, por biomas de todas as regiões. Ao invés de usar somente o lado estético, que em 95% das vezes emprega plantas exóticas, que vieram da Europa, busco também valorizar espécies nativas das regiões.

Em todos os biomas acontece esse uso de espécies exóticas no paisagismo e também no reflorestamento. Se você olhar para o Cerrado, verá que também se usam as mesmas plantas exóticas que vieram de outros países, sendo que algumas delas se tornaram invasoras. É uma mesmice gigante. Claro que temos um movimento enorme, temos um potencial maravilhoso de valorização, e o Roberto foi um visionário disso. Temos um bioma, um ecossistema que tem uma riqueza de espécies e a população chama aquilo de mato e quer tirar da frente. Aqui na minha região mesmo, o sujeito compra um terreno, com restinhos de mata, e a ideia dele é mandar limpar para tirar o ‘mato’. Essa é a visão. Plantar uma graminha, colocar rosa…

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

Como começou a sua relação com as bromélias?

Foi uma casualidade do universo. A primeira vez que eu fui ao campo, fui com grandes nomes da botânica no Brasil. Um deles era o Padre Raulino Reitz, que era chamado o padre das bromélias. Ele era diretor do Jardim Botânico na época em que eu entrei como estagiário. Minha primeira ida ao campo foi com ele e outros botânicos, vendo como eles faziam, aprendendo. No meu primeiro caderninho, a planta número um foi uma bromélia. Me encantei porque a bromélia é um microuniverso. Na maioria das vezes ela usa só as raízes para se sustentar, mas tem aquelas folhas, guarda água, nutrientes, tem animais, insetos. Um ecossistema próprio.

Fiz meu doutorado em bromélias. E nos anos 1990, já preocupado com a conservação, vendo a destruição toda com a clareza do que estava se perdendo, realizei um projeto chamado Bromélias da Mata Atlântica, que mapeou todos os remanescentes desse bioma, do Ceará ao Rio Grande do Sul. Passei dois anos coletando amostras de bromélias para duas finalidades: para o herbário, visando a documentação das espécies, e para uma coleção viva de bromélias. De modo que essas plantas podiam ser reproduzidas e quando um lugar fosse destruído, eu teria mudas para levar lá.

Montei essa coleção com mais de 3 mil bromélias, saíram artigos científicos, enfim. E por causa das bromélias acho que ajudei na formação de mais de 50 profissionais. Grandes nomes das bromélias atuando hoje no Brasil de alguma maneira eu contribui na formação deles.

Aos poucos fui abandonando a pesquisa com foco em bromélias e migrei para a conservação da biodiversidade. Arranjar dinheiro para ir ao campo pode levar algum tempo. Você vai ao campo, faz sua pesquisa, traz as amostras, leva um ano para identificar aquilo tudo, descobrir espécies novas. Depois mais um ano para descrever os protocolos, e ainda mais um ano para publicar. Quando vê, passaram três anos. Em três anos, aquela área que você explorou tem uma velocidade de modificação e de destruição tão mais rápida que o tempo que você levou para publicar seu conhecimento…tem uma dissociação gigantesca, que me incomodava profundamente.

Por achar que nesse país, com essa riqueza de flora que a gente tem, é um pouco um luxo se dedicar a apenas uma família, preferi trabalhar com a flora de um modo geral, com enfoque nas espécies ameaçadas. O que eu tenho hoje de bromélias, no meu sitiozinho, é uma coleção de coisas maravilhosas, lindas. Todas etiquetadas. Tem plantas aqui que estão comigo há 30 anos. Elas são meu termômetro. Quando elas começam a ficar feias, eu preciso voltar para a terapia – passo dois, três dias só cuidando delas. Faço isso três vezes por ano. Dá trabalho, mas eu tenho essas plantas por valor emocional. Porque eu me sinto responsável, tirei elas do seu lugar e trouxe para mim, tenho que cuidar, manter vivas. É uma delícia, se pudesse só fazia isso.

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

Como você vê o processo de formação dessa nova geração de biólogos e botânicos no Brasil?

A biologia cresceu muito desde quando me formei. Sempre digo nas minhas palestras que minha única esperança são os jovens. E quando vejo esses jovens com os olhos brilhando na sua formação, eu reconheço e reforço essa esperança. Mas existe um lado meio cruel. A métrica na ciência é o que você publica – que muitas vezes são coisas interessantíssimas, pesquisas aprofundadas com alta tecnologia – mas falta aquela pergunta: como isso que estou fazendo e publicando melhora uma coisa concreta no meu país? Gera conhecimento, é importante, mas conhecimento é uma coisa muito ampla.

Às vezes eu fazia essa pergunta para os meus alunos e eles entravam em crise. Vem aquele sonho de ser pesquisador, de se aprofundar em um grupo de plantas, ou estudar a interação, ecologia etc. E essa pergunta deixa de ser feita, porque a métrica é o que você produz e não na verdade onde aquilo se aplica. Claro, aumenta o seu entendimento sobre a biodiversidade, sobre a natureza, sobre esse planeta. Mas o mundo está acabando no seu quintal, no seu chão! Então temos uma desconexão

E temos ainda muitas coisas para ajustar. Um engenheiro florestal vê uma árvore e fala: ah, isso é madeira de tal tipo, dá tantos metros cúbicos de madeira, tem esse valor no mercado, se planta assim. O biólogo olha uma árvore e fala: ah, essa espécie é tal, os frutos são assim, a flor é amarela, polinizada…são visões diferentes, que precisam ser integráveis. E cada visão dessa no mundo acadêmico precisa ter objetivos mais práticos, mais direcionados para alguma coisa que vai se reverter concretamente para a sociedade, para a situação da conservação, para o planeta. Porque passamos dois anos no mestrado, ou quatro anos no doutorado, nos aprofundando em uma coisa sem saber muito bem para quê e onde vamos aplicar isso.

Foi essa ruptura que veio a mim, há mais ou menos 20 anos. Eu prefiro ser um pesquisador mediano – porque a métrica é o título publicável, somos medidos assim – e tentar fazer coisas mais práticas. Se pegarmos um exemplo concreto, o Livro Vermelho. Cientificamente, esse livro não conta nada. Não tem pontuação relevante na métrica acadêmica. Tanto que eu escrevi o livro e produzi uns quatro, cinco artigos de análise dos dados para ter alguma pontuação e justificar o mundo acadêmico em que eu vivia. O livro em si, por esse ângulo, não vale muita coisa, mas para mim é o que mais valia no processo. Eu não faço crítica ao mundo acadêmico, mas sim à métrica. Como é medida essa produção. Acaba virando uma coisa egóica.

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

O Livro Vermelho vai fazer 10 anos daqui a pouco, e estamos em uma década muito cruel de desmatamento, queimadas…o quanto de espécies até mesmo desconhecidas não perdemos nesse processo…

Aquele livro tem 2.113 espécies ameaçadas. A missão que eu recebi do Ministério do Meio Ambiente quando elaborei o livro foi atualizar a lista brasileira de espécies ameaçadas. Que estava desatualizada há 16 anos. Quando eu recebi essa missão, busquei o que Brasil já tinha produzido sobre espécies ameaçadas. Juntei tudo que encontrei e chegamos a 2.113 espécies. A lista anterior tinha pouco mais de 400.

Qualquer pessoa pode produzir uma lista de espécies, mas elas precisam ser reconhecidas oficialmente como espécies ameaçadas, para poder ter a força da lei para proteção. Eu queria que essas espécies fossem reconhecidas por lei. O livro foi uma forma de pressionar o próprio ministério em que eu trabalhava a reconhecer isso. Quando ganhamos o Prêmio Jabuti, foi a gota d’água. Pela divulgação, pelo reconhecimento, aquelas 2113 espécies foram reconhecidas oficialmente como ameaçadas de extinção.

De lá para cá, eu diria que já temos quase 5 mil espécies avaliadas, além daquelas, e a maioria ameaçada. Esse reconhecimento é fundamental quando um governo, de fato, quer ter uma política para conservação de espécies. Nesses últimos quatro anos, nessa última gestão do país, o assunto de conservação de espécies andou muito pouco, e nem vai andar. Mas independentemente de essas espécies serem reconhecidas governamentalmente, o fato de serem conhecidas socialmente já é um passo.

A sociedade precisa conhecer. No meu lugar, nessa região aqui de Araras, temos dez espécies ameaçadas de extinção. O que eu posso fazer? O que a comunidade local pode fazer para salvar essas espécies, mesmo que não estejam protegidas por lei?

O Centro Nacional de Conservação da Flora está dentro de uma escala federal, uma escala de governo, e hoje, neste governo, provavelmente vai ter dificuldade para concretizar a ampliação dessa lista.

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

Em suas expedições você deve ter tido contato com muitas comunidades indígenas, povos tradicionais. Como o saber coletivo bate para você nos processos de inventariamento de espécies?

É um mundo maravilhoso de conhecimento e sabedoria. Isso ajudou também o meu crescimento e minha visão de mundo, porque são duas fontes de aprendizado – o mundo acadêmico e o mundo real da floresta. Eu aprendi logo no início uma coisa importante. Sem alguém do lugar você não avança. No tipo de trabalho que a gente faz, o mais importante é ter conhecimento sobre quem são as pessoas daquela região, que conhecem e podem guiar você.

Em 1988 ou 1989, fiz uma expedição ao Pico da Neblina. E eu ainda era aquele cara impulsivo, querendo conhecer tudo. Tínhamos seis guias Yanomami, só um falava português. E aí seguimos, seis dias a pé, subindo, muito extenuante e caótico. Tanto que a expedição não chegou ao pico da neblina. Eu passei os três primeiros dias atrás desse Yanomami, que falava português, perguntando sem parar sobre o que eram as coisas, e ele respondia pouco, ficava em silêncio. E percebi que no quarto dia ele passou a me evitar. E sentado na minha rede me dei conta de que eu não parava de perguntar, de falar, queria saber tudo, estava tão animado e queria ver tudo o que ele conhecia. Então em outro dia, já nos preparando para dormir, em um chão cheio de flores, eu peguei uma flor grande, me sentei do lado dele e perguntei: Davi, você sabia que isso aqui é um órgão masculino, e isso aqui o feminino, e quando junta tudo fazem o fruto? Ele só me olhava, não falava nada. No dia seguinte, na hora do café, ele pegou uma flor daquelas e ficou olhando.

Em 2018 fiz outra expedição ao Pico da Neblina. E a base era na mesma aldeia, mas eram outros guias. Perguntei para um deles sobre o Davi, e ele me disse que ele estava bem velhinho, mas ainda estava lá, e que me levaria até ele na volta. Voltamos da expedição, ele me levou até um velhinho, eu não o reconheci. Mas o velhinho olhou para mim e falou assim: professor das flores! A troca que é uma coisa importante. A minha experiência com as comunidades é de aprendizado total. Não quero só aprender deles, mas o que eu puder também quero orientar e ensinar. Passaram-se mais de 20 anos e o Davi se lembrou, não esqueceu aquele aprendizado.

Então é muito bacana ver a simplicidade, o conhecimento, a experiência, um olhar diferente do seu, uma nova visão. Tem lugares que às vezes eu volto porque quero estar com aquele guia de novo. Que tem troca, ajuda, construção em vez de competição.

 

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

 

Tem alguma expedição, nesses 48 anos, que mexeu mais com você?

Ah sim. Tem algumas. Cada lugar traz uma experiência, como se fosse a experiência de visitar um país diferente. Cada região tem uma experiência única, é difícil até de comparar, de mensurar qual seria a mais marcante. Mas acho que o mais impactante para mim é a experiência com os povos originários das florestas do Rio Jordão, no Acre. Tem um livro muito bacana, o Una Isi Kayawa – Livro da cura do povo Huni Kuin, que foi uma experiência incrível.  Quando eu estava fazendo o Livro Vermelho, uma das espécies que tinha uma importância econômica muito grande – porque as espécies que estão na lista de ameaçadas, em boa parte, são espécies de valor econômico – era o mogno. O mogno é uma das espécies de madeira mais caras do Brasil. E a ciência tem pouca informação sobre o que resta de mogno. Onde é que tem mogno? Quem sabe isso são os madeireiros, não os cientistas. Porque o cientista está no seu laboratório, ele acessa uma base de dados disponíveis, sabe onde ocorre a espécie, mas não em que quantidade, quantos indivíduos em um ano, quantos estão em idade produtiva, se está havendo crescimento, enfim. Poucos sabem sobre esses dados básicos, que para obter é preciso estar no campo, suando, com mosquitos, malária etc. E aí fiz uma expedição no Acre, em uma região em que haveria madeireiros do Peru entrando no Brasil para tirar mogno. E para isso eles expulsavam os indígenas das aldeias. Fomos lá, conhecemos essa comunidade indígena, explicamos, eram várias aldeias, várias lideranças que nos ajudaram, e eles entenderam que a gente trabalhava com plantas. E a medicina deles toda é baseada em plantas.

Um tempo depois, estou lá no Jardim Botânico do Rio, vem um guarda da portaria e diz: Gustavo, tem dois índios com cocares que vieram aqui te procurar, o que eu faço? Vieram dois líderes Huni Kuin ao Jardim Botânico, falar comigo. Contaram a história da etnia deles, e que estavam resgatando a cultura do povo depois de tudo o que tinham passado, e a medicina da floresta. Os pajés estavam velhos, morrendo, os jovens só queriam saber de internet ou ir para cidade em vez de aprender, e então eles queriam fazer um livro com as plantas de cura do povo para resgatar a cultura. Quando me falaram isso, eu logo me comprometi a ajudar. A ideia era uma cartilha, com registro em fotos das plantas que eles usavam e para que usavam. Para que ficasse gravada a memória que estava se perdendo com os pajés.

Foi uma complexidade enorme. Eles não têm língua escrita, só falada. Tive que contratar gente para gravar, com tradutor da língua deles. De cartilha virou livro, contratei uma editora, que também se encantou com a história toda. Virou um livro com papel à prova d’água, que não se desfaz, enfim. Huni kuin significa algo como homem de palavra. E isso ficou na minha cabeça, porque quando me sentei com eles eu disse que ia apoiar. Então tinha que honrar minhas palavras. O livro saiu, foi lindo, fui até lá e entreguei os mil exemplares.

Eles usam a medicina de modo diferente, muito mais espiritualizada. Foi um enorme aprendizado. Eu tive a oportunidade de conviver com eles, fui algumas vezes à aldeia, um mundo que tem uma beleza gigantesca, mas também uma dureza para nós que vivemos na cidade, no mundo urbano.

E no final das contas a minha conclusão como cientista é que boa parte do que eles têm de memória de plantas usadas na medicina não são mais as plantas da floresta. Isso mostra que eles, pelo seu passado histórico, pelo que os brancos fizeram, perderam conhecimento das plantas da floresta e passaram a usar na medicina espécies domesticadas, das capoeiras, dos quintais e lavouras. Olhando botanicamente para as mais de cem plantas que são imprescindíveis na medicina deles, no sistema de cura, poucas são originais da floresta primária.

 

Você tem uma coleção de cadernos de campo que deve superar uma centena, e o trabalho de campo, coleta, classificação, é bastante artesanal. Por outro lado, a tecnologia traz uma série de possibilidades de acesso e cruzamento desses dados. Como esses dois mundos se encontram no processo de inventariamento e catalogação de espécies?

Eu tenho mais de 100 caderninhos, com todos os lugares que eu fui, todas as plantas que coletei, tudo numerado e registrado. Eu vivo nos dois mundos. Desde 1973 até agora as minhas cadernetas são assim. Escrevo a mão, todas elas. Eu coleto a planta e faço a identificação no campo, porque se coleto 500 plantas e deixo esse processo para mais tarde, eu esqueço. Organizo as plantas, o processo de prensagem e secagem, tudo no fim do trabalho de campo. E isso vai para os herbários. Esses herbários passaram a ser digitalizados, disponíveis e acessíveis à sociedade brasileira. Então digamos, uma pessoa que é de Formosa, em Goiás e quer saber sobre uma espécie da sua região que eu coletei. Ela entra na plataforma, coloca meu nome, a cidade e vai acessar essa informação. A amostra, a fotografia da planta e tudo o mais.

Eu tenho dois trabalhos. Eu faço isso no campo e depois passo tudo para uma planilha, que vai para esse mundo tecnológico e fica disponível. Então se você quiser saber, na história do Gustavo, quantas plantas ele coletou na Mata Atlântica, pode fazer a busca usando o filtro adequado.

Essa é uma coisa maravilhosa, não precisar sair de Formosa e vir ao Rio de Janeiro, ficar dentro daqueles salões a 16 graus centígrados, para ter acesso. Temos amostras físicas lá que são de 1790. E agora digitalmente, você pode ver na sua casa.

É uma ferramenta muito boa, mas nada além disso. E ela me ajuda a fazer algumas análises. A distinção que eu faço entre conhecimento e sabedoria se encaixa aqui: conhecimento é o que você aprendeu, e sabedoria é o que você fez com esse conhecimento.

Acervo pessoal de Gustavo Martinelli

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